A identidade de Jesus e o "Deus Desconhecido"

Enviado por Estante Virtual em sex, 23/11/2012 - 01:29
Os primeiros grupos de cristãos, que Renan afirma não passarem de sete a doze homens em cada igreja, pertenciam, sem sombra de dúvida, às classes mais pobres e mais ignorantes. Não tinham, nem podiam ter, a menor idéia das doutrinas altamente filosóficas dos platônicos e dos gnósticos e, evidentemente, sabiam muito pouco sobre a nova religião que se acabava de fabricar. Para esses [homens] - que, na qualidade de judeus, foram esmagados pelo domínio tirânico da "lei", tal como a compreendiam os anciãos das sinagogas, e, na qualidade de pagãos, sempre foram excluídos, como as castas mais baixas ainda o são na Índia, dos mistérios religiosos -, o Deus dos judeus e o "Pai" pregado por Jesus eram a mesma pessoa. As disputas que reinaram desde os primeiros anos que se seguiram à morte de Jesus, entre os partidários paulinos e os petrinos, tiveram um efeito deplorável. O que um grupo fazia, o outro considerava um dever sagrado desfazer. Se as Homilias são tidas como apócrifas e não podem ser admitidas como uma medida infalível para a animosidade que reinava entre os dois apóstolos, temos a Bíblia, e as provas que ela fornece a esse respeito são inumeráveis.
 
Irineu parece tão irremediavelmente emaranhado em seus esforços estéreis para explicar, pelo menos no que concerne às aparências externas, as doutrinas verdadeiras de muitas seitas gnósticas e as apresentar ao mesmo tempo como “heresias” abomináveis, que, deliberadamente ou por pura ignorância, ele as confunde de uma tal maneira que poucos metafísicos seriam capazes de as desembaraçar sem o auxílio da Cabala ou do Codex. Assim, por exemplo, ele é incapaz de estabelecer a diferença entre os ofitas e nos diz que eles chamavam de “Hominem”, o “Deus de tudo”, e a sua mente de o SEGUNDO homem ou o “Filho do Homem”. Theodoret afirma a mesma coisa, ele que viveu mais de dois séculos depois de Irineu e que fez uma grande confusão com a ordem cronológica em que as diferentes seitas se sucederam. Nem os sethianistas (um ramo dos nazarenos judaicos) nem os ofitas, uma seita puramente grega, jamais pretendiam alguma coisa desse tipo. Irineu contradiz as suas próprias palavras ao descrever, em outro lugar, as doutrinas de Cenrinthus, o discípulo direto de Simão, o Mago. Ele diz que Cenrinthus ensinava que o mundo não foi criado pelo PRIMEIRO DEUS mas por uma virtude (virtus) ou poder, um Aeon tão distanciado da Causa Primeira que ele ignora até mesmo AQUELE que está acima de todas as coisas. Este Aeon dominou Jesus, engendrou-o fisicamente através de José por meio de uma mulher que não era virgem, mas apenas a esposa desse José, e Jesus nasceu então como todos os homens. Considerado deste ponto de vista físico de sua natureza, Jesus foi chamado de o “filho do homem”. Foi só depois de seu batismo que o Cristos, o ungido, desceu dos principados celestes sob forma de pomba, e o proclamou, através de Jesus, “o Pai DESCONHECIDO” (Irineu, Op. cit., I, XXVI, 1.).
 
Se, portanto Jesus fosse considerado, do ponto de vista físico, como um filho de um homem e, do ponto de vista espiritual, como o Cristos, que o eclipsou, como poderia então o 'DEUS DE TUDO" o "Pai Desconhecido", ser chamado de Homo pelos gnósticos, um HOMEM, e a sua Mente de Ennoia, o SEGUNDO homem, ou filho do homem? Nem na Cabala oriental, nem no Gnosticismo, o "Deus de tudo" jamais foi antromorfizado. É só a primeira emanação, ou antes a segunda - pois Shekhînah, Sephirah, Profundidade e outras virtudes femininas primeiramente manifestadas também são emanações - que são chamadas de "homens primitivos". Assim, Adão-Cadmo, Ennoia (ou Sigê), os Logoi em suma, são os "filhos unigênitos", mas não os Filhos do Homem, denominação que pertence propriamente ao Cristos, o filho de Sophia (a primogênita) e do homem primitivo que o produz através da sua própria luz vibratória, que emana da fonte ou causa de tudo, por conseguinte a causa de sua luz também, o "Pai Desconhecido". Há uma grande diferença, estabelecida pela metafísica gnóstica, entre o primeiro Logos não-revelado e o "ungido", que é o Cristos. Ennoia pode ser chamado, como o compreende Fílon, de Segundo Deus, mas só ele é o "homem Primitivo e Primeiro", e de maneira alguma o Segundo, como Theodoret e Irineu o consideram. É só o desejo crônico deste último de associar de todas as maneiras Jesus, mesmo em seu Contra as heresias, ao Deus Supremo, o que o levou a tantas falsificações.
 
A idéia de identificar o Deus Desconhecido mesmo, como o Cristos, o ungido - o Aeon que o eclipsou -, deixando-se o homem Jesus completamente fora da questão, nunca passou pela cabeça dos gnósticos, nem dos apóstolos diretos de Paulo, apesar do que poderiam fazer crer todas as falsificações que pudessem ser acrescentadas.
 
Já nas primeiras tentativas de se comparar os manuscritos originais, com os que os sucederam, ficou bastante claro até que ponto essas falsificações deliberadas são audaciosas e desesperadas. Na edição que o Bispo Horsley preparou das obras de Sir Issac Newton, muitos manuscritos sobre assuntos teológicos foram prudentementes subtraídos à publicação. O artigo conhecido como Descida de Cristo ao inferno, que também está no Credo dos Apóstolos, não se encontra nos manuscritos dos séculos IV ou VI. Trata-se evidentemente de uma interpolação, copiada das fábulas de Baco e de Hércules e imposta à cristandade como um dogma de fé. A esse respeito, o autor do prefácio (David Casley e o Catálogo, publicado em Londres, em 1734) ao Catalogue of the Manuscripts of the King's Library (prefácio, p. XXIV) observa: "Espero que a inserção do artigo Descida de Cristo ao Inferno, no Credo dos Apóstolos, seja tão facilmente explicada, quanto a inserção desse versículo" (a saber, Primeira Epístola de São João, V, 7).
 
Ora, esse versículo se lê hoje da seguinte maneira: "Pois há três que prestam testemunho no Céu" o Pai, o Verbo e o Espírito Santo; e os três são Um". Esse versículo, que "devia ser lido nas igrejas", sabe-se hoje que é espúrio. Não se encontra "em nenhum manuscrito grego, exceto naquele de Berlim", que foi transcrito de alguma paráfrase interpolada entre as linhas. Na primeira e na segunda edições de Erasmo, impressas em 1516 e 1519, essa alusão às três testemunhas celestes está omitida; e o texto não está contido em nenhum manuscrito grego escrito antes do século XV. Não foi mencionado pelos escritores eclesiásticos gregos, nem pelos padres latinos primitivos, tão ansiosos por aceitar qualquer prova que os ajudasse a estabelecer as suas trindades; e foi omitido por Lutero em sua versão alemã.
 
Cai assim por terra a coluna mais sólida da doutrina trinitária. Uma outra falsificação, não menos evidente, é citada pelo editor do Novo Testamento Apócrifo, segundo as palavras de Sir Isaac Newton. Newton observa que "o que os latinos fizeram a esse texto (Primeira Epístola de São João, V, 7), os gregos fizeram ao de São Paulo" (I Timóteo, III, 16). Pois, mudando o para f, a abreviatura de Øeós [Deus], no manuscrito de Alexandria, do qual se fizeram cópias posteriores, lê-se hoje: `Grande é o mistério da Divindade, DEUS manifesto na carne' ; ao passo que todas as versões antigas, dentre as quais a de Jerônimo, lêem: `Grande é o mistério da divindade, QUE SE manifestou na carne' . Newton acrescenta que, as discussões sobre essa falsificação estão terminadas, aqueles que lêem DEUS manifesto na carne, em vez de divindade que se manifestou na carne, consideram essa passagem como "um dos textos mais óbvios e mais pertinentes à discussão".
 
E fazemos novamente a pergunta: Quem foram os primeiros cristãos? Aqueles que foram prontamente convertidos pelas simplicidade eloqüente de Paulo, que lhes prometeu, em nome de Jesus, a libertação dos laços estreitos do eclesiasticismo. Eles entenderam apenas uma coisa: eram os "filhos da promessa" (Gálatas, Iv, 28). A "alegoria" da Bíblia mosaica lhes fora desvelada; a aliança "do Monte Sinais, que gera filhos para a servidão", foi Agar (ibid., 24), a antiga sinagoga judaica, e ele a estava "na servidão com os filhos" com relação a Jerusalém, a nova e livre, "a mãe de todos nós". Por um lado, a sinagoga e a lei que perseguia todos aqueles que ousava ultrapassar a linha estreita da beatitude e do dogmatismo; por outro, o Paganismo com as suas sublimes verdades filosóficas ocultas à visão, desvelando-se apenas a poucos e deixando as massas procurarem desesperadamente quem fosse o Deus, neste panteão superlotado de divindades e subdivindades. Para os outros, o apóstolo da circuncisão, apoiado por todos os seus seguidores, prometia, se eles obedecessem à "lei", uma vida futura e uma ressurreição da qual não faziam idéia. Ao mesmo tempo, nunca perdeu uma só oportunidade de contradizer Paulo, sem o nomear todavia, mas indicando-o tão claramente que é quase impossível duvidar de quem seja aquele a quem Pedro se refere. Embora ele possa ter convertido alguns homens, que acreditavam na ressurreição mosaica prometida pelos fariseus ou caíram nas doutrinas niilistas dos saduceus, ou professavam o gentilismo politeísta da plebe pagã, que não reconhece nenhum futuro após a morte, a não ser um nada lúgubre - não achamos que a contradição sistemática dos dois apóstolos tenha contribuído para fortalecer sua obra de proselitismo. Obtiveram pouco sucesso no seio das classes pensantes eruditas, como a história eclesiástica demonstra claramente. Onde estava a verdade? E onde a palavra inspirada de Deus? Por um lado, como vimos, eles ouviram o apóstolo Paulo explicar que das duas alianças, "coisas que são uma alegoria", a antiga, a do Monte Sinais, "que gera filhos para a servidão", era Agar, a escrava; e o próprio Monte Sinais correspondia a "Jerusalém", que agora está "na servidão" com os seus filhos circuncisos; e a nova aliança era Jesus Cristo - a "Jerusalém do alto e livre", e, por outro lado, Pedro, que o contradizia e chegava até a injuriá-lo. Paulo exclama veementemente: "Desterrai a escrava e o seu filho" (a velha lei e a sinagoga). "O filho da escrava não herdará com o filho da mulher livre". "Permanecei firmes, portanto, na liberdade com que Cristo nos fez livres; não vos submetais novamente ao julgo da servidão. (...) Vede, eu, Paulo, eu vos digo que, se vos fazeis circuncidar, Cristo não vos aproveitará nada!" (Gálatas, IV, 30; V, 1-2). E o que é que Pedro escreve? O que quer ele dizer com estas palavras: "Porque falando palavras arrogantes de vaidade (...) Prometendo-lhes a liberdade, quando eles mesmos são escravos da corrupção: porque todo que é vencido, é também escravo daquele que o venceu. (...) Porque, se depois de se terem retirado das corrupções do mundo pelo conhecimento do Senhor e Salvador (...) se deixam delas vencer e enredar (...) melhor lhes era não ter conhecido o caminho da religião, do que depois de o ter conhecido tornar para trás, deixando aquele mandamento santo que lhes fora dado"(2 Pedro II, 18-31).
 
Pedro certamente não faz alusão aos gnósticos, pois eles nunca viram "o mandamento santo que lhes fora dado"; Paulo sim. Eles nunca prometeram a "libertação" da servidão, mas Paulo o fez repetidas vezes. Além disso, Paulo rejeita a "velha aliança", Agar, a escrava; e Pedro a ela se agarra com todas as suas forças. Paulo advertiu o povo contra os poderes e as dignidades (os anjos inferiores dos cabalistas); e Pedro, como mostraremos a seguir, respeita-os e condena aqueles que não o fazem. Pedro prega a circuncisão e Paulo a proíbe.
 
Mais tarde, quando todas essas asneiras, contradições e invenções foram forçosamente adaptadas ao quadro laboriosamente elaborado pelo clero da casta episcopal da nova religião, à qual se deu o nome de Cristianismo, e quando o próprio quadro caótico foi astuciosamente preservado de uma exame mais aprofundado, por meio de uma formidável coleção de penitências eclesiásticas e de anátemas, destinados a manter à distância os curiosos sob o pretexto falso de sacrifício e de profanação dos mistérios divinos, e quando milhões de pessoas foram massacrados em nome de Deus da misericórdia - nesse momento apareceu a Reforma. Ela merece, sem dúvida, o seu nome, no sentido paradoxal da palavra. Ela abandonou Pedro e diz que escolhe Paulo para seu único líder. E o apóstolo que vociferou contra a velha lei da servidão, que deu liberdade total aos cristãos de celebrar o Sabbath ou abandoná-lo, que rejeita tudo o que é anterior a João Batista - é agora proclamado o porta-bandeira do Protestantismo, que se apega à velha lei mais do que os judeus, aprisiona aquele que consideram o Sabbath como o fizeram Jesus e Paulo e ultrapassa a sinagoga do primeiro século em intolerância dogmática!
 
Mas, então perguntaremos ainda, quem eram os primeiros cristãos? Sem dúvida alguma os ebionistas; e, a esse respeito, seguimos a opinião dos melhores críticos. "Não há dúvida de que o autor [das Homilias clementinas] era um representante do Gnosticismo, que foi, certa vez, a forma mais pura da cristandade primitiva. (...)" E quem eram os ebionistas? Os discípulos e seguidores dos nazarenos primitivos, os gnósticos cabalistas. No prefácio do Codex nazaraeus, o tradutor afirma: "Que os nazarenos não rejeitassem (os Aeons) é natural. Pois eles eram os instrumentos dos ebionistas, e estes admitiam esse fato".
 
Além disso, Epifânio, o Homero cristão das Heresias, diz-nos que "Ebion conhecida os nazarenos, a forma dos ceríntios (que supõem que o mundo foi elaborado pelos anjos) e a denominação de Cristãos". Uma denominação sem dúvida aplicada muito mais corretamente a eles do que aos (chamados) cristãos ortodoxos da escola de Irineu e do Vaticano posterior. Renan mostra que os ebionistas reuniam em sua seita todos os parentes sobreviventes de Jesus. João Batista, seu primo e precursor, era o Salvador aceito pelos nazarenos e o seu profeta. Seus discípulos moravam do outro lado do Jordão, e o autor de Sõd, the Son of the Man prova, clara e peremptoriamente, que a cena do batismo do Jordão ocorreu no local do culto a Adônais. "Do outro lado do Jordão e além do lago moravam os nazarenos, uma seita que se acredita já ter existido quando do nascimento de Jesus e tê-lo compreendido entre os seus membros. Eles devem ter-se estendido ao longo da margem oriental do Jordão e ao sudeste, entre os árabes (Gálatas, I, 17, 21,: II, 11) e entre os sabeus na direção de Basra; e, ainda, eles devem ter-se dirigido para o norte do Líbano até a Antioquia, e também para o nordeste, até o estabelecimento nazareno de Beroea, onde São Jerônimo se encontrou. Os mistérios de Adónis ainda prevalecem no Deserto; nas montanhas, Aiai Adonai ainda era um grito".
 
"Unido (conjunctus) aos nazarenos, todos (ebionita) ensinava aos outros a sua própria iniqüidade e resolveu que Cristo nascera da semente de um homem", escreve Epifânio.
 
E, se eles, o fizeram, devemos acreditar que conheciam sobre o seu profeta contemporâneo muito mais do que Epfânio quatrocentos anos mais tarde. Theodoret, como fizemos ver em outro lugar, descreve os nazarenos como judeus que "veneram o Ungido como um homem justo" e utilizam o evangelho chamado "Segundo São Pedro". Jerônimo encontrou, na biblioteca reunida em Cesaréia pelo mártir Panfílio, evangelho idêntico e original, escrito em hebraico por Mateus, o apóstolo publicano. "Recebi dos nazarenos, que usavam [esse Evangelho] em Beroea, na Síria, permissão para traduzi-lo", escreve ele por volta do final do século IV. "No Evangelho que os nazarenos e os ebionistas utilizam", acrescenta Jerônimo. "e que traduzi recentemente do hebraico para o grego e que a maioria das pessoas diz ser o verdadeiro Evangelho de São Mateus", etc. (Jerônimo, Comment. to Matthew, livro II, cap.13. Jerônimo acrescenta que foi escrito em caldaico, mas com letras hebraicas [Dial. contra Pelag., III, 2].
 

Outras páginas interessantes: