Enquanto possa ocorrer que alguns estejam querendo admitir a posse pelo Apóstolo e seus sucessores imediatos de um conhecimento das coisas espirituais mais profundo do que o que era corrente entre as massas dos crentes em seu redor, poucos provavelmente desejarão dar o próximo passo, e, deixando este círculo enfeitiçado, aceitar os Mistérios da Igreja Primitiva como o depositário de seus ensinamentos sagrados. Mesmo que tenhamos São Paulo fazendo os preparativos para a transmissão do ensino não escrito, iniciando ele mesmo a São Timóteo, e instruindo São Timóteo para que por sua vez iniciasse outros, os quais o dariam a ainda outros, depois deles. Vemos assim um arranjo de quatro gerações sucessivas de instrutores, citadas nas mesmas Escrituras, e eles com muita folga sobrepujariam os escritores da Igreja Primitiva que testemunham a existência dos Mistérios. Pois entre eles há discípulos dos próprios Apóstolos, embora as declarações mais definitivas sejam daqueles afastados dos Apóstolos por um instrutor intermediário. Porém, assim que iniciamos o estudo dos escritos da Igreja Primitiva, se nos deparam os fatos de que existem alusões que são inteligíveis apenas considerando a existência dos Mistérios, e depois declarações de que os Mistérios realmente existem. Isto poderia, é claro, ser esperado, analisando as condições em que o Novo Testamento deixa o assunto, mas causa satisfação descobrir que os fatos correspondem às expectativas.
As primeiras testemunhas são aqueles chamados Padres Apostólicos, os discípulos dos Apóstolos; mas demasiado pouco subsiste de seus escritos, e mesmo o que resta é questionado. Quando não são escritas controversamente, as declarações não são tão categóricas como as dos escritores posteriores.
Suas cartas são para o encorajamento dos crentes. Policarpo, Bispo de Smirna, e, juntamente com Inácio, discípulo de São João (The Martyrdom of Ignatius, vol. I, cap. III – Os texto utilizados provêm da Ante-Nicene Christian Library, de Clarke, um utilíssimo compêndio de antigüidades Cristãs. O número do volume é o seu número na série), expressa a esperança de que seus correspondentes sejam “bem versados nas sagradas Escrituras e que nada lhes seja oculto; mas para mim este privilégio ainda não foi outorgado” (Ibid., The Epistle of Polycarp, cap. XII). – escrevendo, aparentemente, antes de alcançar a Iniciação plena. Barnabé fala em comunicar “alguma porção do que eu mesmo recebi” (Ibid., The Epistle of Barnabas, cap. I) e depois de expor a Lei misticamente, declara que “nós, então, entendendo corretamente Seus mandamentos, os explicamos do modo como o Senhor pretendeu que significassem” (Ibid., cap. X). Inácio, Bispo de Antióquia, um discípulo de São João (Ibid., The Martyrdom of Ignatius, cap. I), fala de si mesmo como “ainda não sendo perfeito em Jesus Cristo. Pois só agora iniciei a ser um discípulo, e falo a vós como a meus condiscípulos” (Ibid., Epistle of Ignatius to the Ephesians, cap. III), e fala deles como “iniciados nos mistérios do Evangelho com Paulo, o santo, o martirizado” (Ibid., cap. XII). Mais uma vez ele diz: “Poderia eu não vos escrever coisas mais cheias de mistério? Mas temo em fazê-lo, podendo prejudicar-vos, a vós que sois apenas bebês. Perdoai-me a este respeito, pois não sendo capazes de receber todo seu peso, seríeis sufocados por elas. Pois mesmo eu, embora ligado (por Cristo) e sendo capaz de entender coisas celestiais, as ordens angélicas, e os diferentes tipos de anjos e hierarquias, a diferença entre tronos e potestades, a grandiosidade dos éons, e a preeminência dos querubins e serafins, a sublimidade do Espírito, o reino do Senhor, e acima de tudo a incomparável majestade de Deus Todopoderoso – embora eu conheça estas coisas, ainda não sou de modo algum perfeito, nem sou um discípulo da estatura de Paulo ou Pedro” (Ibid., To the Trallians, vol. 2). Esta passagem é interessante, ao indicar que a organização das hierarquias celestes era um dos assuntos sobre os quais era dada instrução nos Mistérios. Novamente ele fala do Sumo Sacerdote, do Hierofante, “a quem foi confiado o Santo dos Santos, e quem sozinho foi informado dos segredos de Deus” (Ibid., To the Philadelphians, cap. IX).
Passamos a seguir para São Clemente de Alexandria e seu discípulo Orígenes, os dois escritores dos séculos II e III que mais nos contam sobre os Mistérios na Igreja Primitiva; embora a atmosfera geral seja cheia de alusões místicas, os dois são claros e categóricos em suas asserções de que os Mistérios eram uma instituição reconhecida.
São Clemente foi um discípulo de Panteno, e fala dele e de dois outros, ditos ser provavelmente Tatiano e Teódoto, como “preservando a tradição da doutrina bendita derivada diretamente dos santos Apóstolos Pedro, Tiago, João e Paulo” (Clemente de Alexandria, Stromata, livro I, cap., I – A.-N.C.L, vol. IV), assim seu elo com os próprios Apóstolos tem apenas um intermediário. Ele foi o diretor da Escola Catequética de Alexandria em 189 dC, e morreu cerca de 220 dC. Orígenes nasceu em torno de 185 dC, foi seu discípulo, e é, talvez, o mais instruído dos Padres, e um homem da mais rara beleza moral. Estas são as testemunhas de quem recebemos o mais importante registro da existência de Mistérios definidos na Igreja Primitiva.
Os Stromata, ou Miscelânea, de São Clemente, são nossa fonte de informação sobre os Mistérios naquela sua época. Ele mesmo fala destes escritos como uma “miscelânea de notas Gnósticas, de acordo com a verdadeira filosofia” (Stromata, livro I, cap. XXVIII – A.-N.C.Lib., vol. IV), e as descreve também como memorandos dos ensinamentos que ele mesmo recebera de Panteno. A passagem é instrutiva: “O Senhor... permitiu-nos comunicar aqueles Divinos Mistérios, e aquela santa luz, àqueles capazes de os receber. Ele certamente não revela à multidão o que não pertence à multidão, mas aos poucos que Ele sabe que lhes pertencem, que são capazes de recebê-los e ser moldados de acordo com eles. Mas coisas secretas são confiadas á voz, e não ao escrito, como é o caso com Deus. E se alguém diz (parece que mesmo naquele tempo havia alguns que objetavam de alguma verdade ser ensinada secretamente!) que está escrito ‘Não há nada escrito que não seja revelado, nem oculto que não seja descoberto’, que também ouça de nós, que àquele que ouve secretamente, mesmo o que é secreto será manifesto. Isto é o que foi predito por aquele oráculo. E para aquele que é capaz de conservar em segredo o que lhe é transmitido, o que é velado lhe será descoberto como verdade; e o que está oculto da maioria aparecerá manifesto aos poucos... Os Mistérios são confiados misticamente, para o que é falado possa estar na boca do que fala; não em sua voz, mas em seu entendimento... O escrito destes meus memoranda, bem o sei, é fraco quando comparado com aquele espírito, que é cheio de graça, o qual eu tive o privilégio de ouvir. Mas será uma imagem para recordar o arquétipo àquele que foi tocado com o Tirso”. O Tirso, podemos assinalar, era a vareta levada pelos Iniciados, e os candidatos eram tocados com ela durante a cerimônia de Iniciação. Tinha uma significação mística, simbolizando a medula espinhal e a glândula pineal nos Mistérios Menores, e um Bastão, conhecido dos Ocultistas, nos Maiores. Dizer, portanto, “àqueles que foram tocados com o Tirso”, era exatamente o mesmo que dizer, “àquele que foi iniciado nos Mistérios’. Clemente prossegue: “Nós professamos não explicar coisas secretas suficientemente – longe disto – mas apenas recordálas à memória, se tivermos esquecido algum detalhe, ou com o intuito de não esquecer. Muitas coisas, sei bem, nos escapam, na da passagem do tempo, e que deixamos de lado sem as escrever... Há coisas então de que não guardamos memória alguma; pois o poder que estava nos homens benditos era grande”. Uma experiência freqüente daqueles ensinados pelos Grandes Seres, pois Sua presença estimula e torna ativos poderes que normalmente estão latentes, e que o discípulo, desassistido, não pode evocar. “Também há coisas que permanecem de todo não registradas; que agora nos fogem; e outras que estão confusas, tendo se desvanecido na própria mente, uma vez que tal tarefa não é simples para os inexperientes; estas eu reavivo em meus comentários. Algumas coisas eu omito de propósito, exercitando uma sábia seleção, receando escrever o que eu evitei falar; não para enganar – pois seria errado – mas temendo por meus leitores, para que não tropecem tomando-as num sentido equívoco; e, como diz o ditado, estaríamos ‘dando uma espada para uma criança’. Pois é impossível que o que fosse escrito não fosse percebido (se tornasse sabido), assim permanece impublicado por mim. Mas sendo sempre circunspecto, usando apenas uma voz, a do escrito, (as coisas escritas) não respondem nada para aquele que faz perguntas além do que foi escrito; pois elas requerem necessariamente a ajuda de alguém, seja de quem escreveu, ou de outro que seguiu em seus passos. Meu tratado esconde certas coisas; em outras se demora; outras apenas menciona. Ele tenta falar discretamente, exibir secretamente, e demonstrar silenciosamente” (Ibid., livro I, cap. I).
Esta passagem, se apenas ela existisse, seria suficiente para confirmar a existência de um ensinamento secreto na Igreja Primitiva. Mas de modo algum é um espécimen isolado. No capítulo XII do mesmo livro I, sob o título “Os Mistérios da Fé não devem ser divulgados a todos”, Clemente declara que, uma vez que outros além do sábio podem chegar a ver sua obra, “é obrigatório portanto ocultar em um Mistério a sabedoria enunciada, que o Filho de Deus ensinou”. Língua purificada de quem fala, ouvido purificado de quem ouve, isto era necessário. “Tais foram as restrições no caminho de minha escrita. E mesmo agora eu temo, como se diz, de ‘lançar as pérolas aos porcos, para que não as calquem sob seus pés e se voltem contra nós e nos despedacem’. Pois é difícil exibir as palavras realmente puras e transparentes a respeito da verdadeira luz aos ouvidos suínos e destreinados. Pois dificilmente haveria coisas que pudessem ser mais ridículas do que estas para a multidão; nem, por outro lado, qualquer assunto poderia ser mais admirável ou mais inspirador para aqueles de natureza nobre. Mas o sábio não profere com sua boca o que discute em concílio. Mas o que ouvis no ouvido, disse o Senhor, ‘proclamai acima das casas’, fazendo com que recebam as tradições sagradas do verdadeiro conhecimento, e expondo-as alto e conspicuamente; e já que ‘ouvimos no ouvido’, então as entregarmos a outros é obrigatório; mas não nos agrada comunicar a todos sem distinção o que lhes é dito em parábolas. Mas só existe um esboço em nossos memoranda, os quais têm a verdade esparsa e difusa, para que possa escapar da atenção daqueles que apanham sementes como gralhas; mas quando elas encontram um homem que as acolhe bem cada uma delas germinará e produzirá grão”.
Clemente poderia ter acrescentado que “proclamar acima das casas” era proclamar ou expor na assembléia dos Perfeitos, dos Iniciados, e de modo algum bradá-las para os homens nas ruas.
Novamente ele diz que aqueles que são “ainda cegos e surdos, não tendo entendimento, ou a visão clara e penetrante da alma contemplativa... devem ficar de fora do coro divino... Por conseguinte, em concordância com o método de ocultação, o Verbo verdadeiramente sagrado, verdadeiramente divino e necessário para nós, depositado no escrínio da verdade, era indicado, pelos egípcios, pelo que eles chamavam de adyta, e os Hebreus, de véu. Somente os consagrados... eram autorizados a ter-lhe acesso. Pois Platão também ensinou que não é lícito para ‘o impuro tocar no que é puro. Por isso as profecias e oráculos são proferidos em enigmas, e os Mistérios não são exibidos de imediato e em amplitude a todos, mas somente depois de certas purificações e instruções prévias” (Ibid., livro V, cap. IV). Ele então discorre longamente sobre os Símbolos, expondo os Pitagóricos, os Hebreus, Egípcios, e então assinala que o ignorante e o inculto falham em entendê-los. “Mas o Gnóstico compreende. Pois não é desejado que todas as cosias sejam expostas indiscriminada e completamente a todos, nem que os benefícios da sabedoria sejam comunicados àqueles que nem em sonho se purificaram na alma (pois não é permitido entregar a qualquer arrivista o que foi procurado com tantos esforços laboriosos); nem serão expostos ao profano os Mistérios da Palavra”. Os Pitagóricos e Platão, Zenão e Aristóteles tinham ensinamentos exotéricos e esotéricos. Os filósofos estabeleceram os Mistérios, pois “não seria mais benéfico para a santa e bendita contemplação das realidades serem ocultas?” (Ibid., cap. IX). Os Apóstolos também aprovavam “o velamento dos Mistérios da Fé”. “pois existe uma instrução para os perfeitos”, à qual se alude em Colossenses, 9-11 e 25-27. “Tanto é que, por outro lado, então, existem os Mistérios que estavam ocultos até o tempo dos Apóstolos, e foram pregados por eles assim como foram recebidos do Senhor, e, ocultos no Antigo Testamento, foram manifestos aos santos. E, por outro lado, há ‘as riquezas da glória do mistérios entre os Gentios’, que é a fé e esperança em Cristo; o que em outra parte ele chama de “o fundamento”. Ele cita São Paulo para demonstrar que este “conhecimento não pertence a todos”, e diz, referindo-se a Hebreus V e VI, que “certamente existem entre os Hebreus algumas coisas transmitidas oralmente”; e então se refere a São Barnabé, que fala de Deus, “que colocou em nossos corações a sabedoria e o entendimento de seus segredos”, e diz que “é dado a poucos entender estas coisas”, como se apresentando “um traço de tradição Gnóstica”. “Portanto a instrução que revela coisas ocultas é chamada de iluminação, assim como é somente o instrutor que levanta a tampa da arca” (Ibid., livro V, cap. X). Referindo-se mais a São Paulo, ele comenta sua declaração em Romanos de que ele “virá na plenitude da bênção de Cristo” (loc. cit., XX, 29), e diz que ele significa com isto “o dom espiritual e a interpretação Gnóstica, que ao estar presente deseja transmitir a eles como ‘a plenitude de Cristo, de acordo com a revelação do Mistérios selado nas eras da eternidade, mas agora manifesto pelas Escrituras proféticas’ (Ibid., XVI, e 25-26; a versão citada difere em palavras, mas não em sentido, da Edição Inglesa Autorizada)... Mas apenas a uns poucos dentre eles é mostrado o que são estas coisas que o Mistério contém. Corretamente, então, Platão, nas cartas tratando de Deus, diz: ‘Devemos nos expressar em enigmas; para que se por qualquer acaso o escrito, por terra ou por mar, cair nas mãos de alguém, este permaneça ignorante” (Stromata, livro V, cap. X).
Depois de muito exame dos escritores gregos, e uma investigação na filosofia, São Clemente declara que a Gnose “transmitida e revelada pelo Filho de Deus é sabedoria... E a Gnose em si é aquilo que continuou pela transmissão a uns poucos, tendo sido transmitida oralmente pelos Apóstolos” (Ibid., livro VI, cap. VII). É feita uma exposição muito alentada da vida do Gnóstico, do Iniciado, e São Clemente a conclui dizendo: “Que isto baste para aqueles que têm ouvidos. Pois não é preciso desvelar o mistério, mas apenas indicar o que baste, para aqueles que são partícipes no conhecimento, para traze-lo de novo à mente” (Ibid., livro VII, cap. XIV).
Considerando a Escritura como consistindo de alegorias e símbolos, e como escondendo o sentido a fim de estimular a indagação e para preservar o ignorante do perigo (ibid., livro VI, cap. XV), São Clemente naturalmente confinou a instrução superior aos mais cultos. “Nosso Gnóstico será profundamente culto” (Ibid., livro VI, cap. X), diz ele. “Pois o Gnóstico deve ser erudito” (ibid., livro VI, cap. VII). Aqueles que adquiriram desenvoltura através de treinamento prévio poderiam dominar o conhecimento mais profundo, pois embora “um homem possa ser um crente sem estudo, também declaramos que é impossível para um homem sem estudo compreender as coisas que são expostas na doutrina” (Ibid., livro I, cap. VI). “Alguns que se imaginam naturalmente dotados não desejam se aproximar da filosofia ou da lógica; antes não desejam aprender a ciência natural. Eles requerem apenas a fé pobre... Assim também eu chamo de verdadeiramente erudito aquele que leva tudo à base da verdade – para que, da geometria, da música, da gramática e da própria filosofia, selecionando o que é útil, preserve a fé contra assaltos.
Quão necessário é, para o que deseja compartilhar do conhecimento de Deus, tratar dos assuntos intelectuais através da filosofia” (ibid., cap. IX). “O Gnóstico se vale dos ramos do conhecimento como exercícios preparatórios auxiliares” (Ibid., livro VI, cap. X). Quão longe estava São Clemente de pensar que o ensinamento do Cristianismo devesse ser medido pela ignorância do inculto.
“Aquele que é familiarizado com todos os tipos de sabedoria será preeminentemente um Gnóstico” (Ibid., livro I, cap. XIII). Assim enquanto acolhe o ignorante e o pecador, e encontra no Evangelho o que atende às suas necessidades, considera que somente o culto e o puro seriam candidatos adequados para os Mistérios. “O Apóstolo, distintamente da perfeição Gnóstica, chama a fé comum de fundamento, e algumas vezes de leite” (Stromata, vol. XII, livro V, cap. IV), mas sobre aquele fundamento devia ser erguido o edifício da Gnose, e o alimento próprio de homens devia suceder ao dos bebês. Não há nenhuma intolerância ou complacência na distinção que ele faz, mas apenas um calmo e sábio reconhecimento dos fatos.
Mesmo o candidato bem preparado, o discípulo culto e treinado, só poderiam esperar avançar passo a passo nas profundas verdades desveladas nos Mistérios. Isto aparece claramente em seus comentários sobre a visão de Hermas, onde ele também dá algumas sugestões sobre o método de ler-se obras ocultas. “Não deu também o Poder, que apareceu a Hermas na Visão, sob a forma da Igreja, para transcrição o livro que ele desejava que fosse conhecido dos eleitos? E isto, ele diz, ele transcreveu ao papel, não sabendo como completar as sílabas. E isto significa que a Escritura é clara para todos, quando tomada ao pé da letra; e que isto é a fé que ocupa o lugar dos rudimentos. Daí é empregada também a expressão figurada ‘leitura de acordo com a letra’, enquanto que nós entendemos que a interpretação gnóstica das Escrituras, quando a fé chegou a um grau avançado, é comparada com a leitura de acordo com as sílabas... Porém aquilo o Salvador ensinou os Apóstolos, a interpretação oral dos escritos (Escrituras) foi dada também a nós, inscrita pelo poder de Deus nos corações renovados, de acordo com a renovação do livro. Assim aqueles de grande reputação entre os gregos dedicam o fruto da romãzeira a Hermes, a quem chamam de fala, por conta de sua interpretação. Pois a fala oculta muito... Portanto não é apenas àqueles que lêem com simplicidade que a aquisição da verdade é tão difícil, mas a história de Moisés ensina que nem mesmo àqueles cuja prerrogativa é o conhecimento da verdade a sua contemplação é desvelada completamente; assim como os hebreus foram acostumados a contemplar a glória de Moisés, e os profetas de Israel as visões dos anjos, assim também nós nos tornamos capazes de olhar os esplendores da verdade face a face” (Ibid., livro VI, cap. XV).
Poderiam ser dadas ainda outras referências, mas estas serão suficientes para estabelecer o fato de que São Clemente sabia da existência dos Mistérios no seio da Igreja, havia sido iniciado neles, e escreveu para o benefício daqueles que também haviam sido iniciados.
A testemunha seguinte é o discípulo Orígenes, aquela brilhantíssima luz de erudição, coragem, santidade, devoção, brandura e zelo, cujas obras permanecem como minas de ouro onde o estudante pode garimpar os tesouros da sabedoria.
Em sua famosa controvérsia contra Celso, foram feitos ataques ao Cristianismo que suscitaram uma defesa da posição Cristã onde foram feitas freqüentes referências aos ensinamentos secretos (Contra Celsus, livro I. Este livro é encontrado no volume X da A.-N.C.Lib. Os livros restantes estão no volume XXIII).
Celso alegou, como argumento de seu ataque, que o Cristianismo era um sistema secreto, e Orígenes refuta isto dizendo que conquanto certas doutrinas fossem secretas, muitas outras eram públicas, e que este sistema de ensinamentos exotéricos e esotéricos, adotado no Cristianismo, era também de uso geral entre os filósofos. O leitor notará, na passagem abaixo, a distinção feita entre a ressurreição de Jesus, considerada sob uma luz histórica, e o “mistério da ressurreição”:
“Acima de tudo, uma vez que ele (Celso) freqüentemente chama a doutrina Cristã de sistema secreto (de fé), devemos confutá-lo também neste ponto, uma vez que quase todo o mundo está mais familiarizado com aquilo que os Cristãos pregam do que com as opiniões favoritas dos filósofos. Pois quem desconhece a declaração de que Jesus nasceu de uma virgem, e que foi crucificado, e que Sua ressurreição é um artigo de fé, e que é esperado um juízo final, no qual os maus serão punidos de acordo com suas faltas, e os justos serão devidamente recompensados? Mesmo assim, o Mistério da ressurreição, não sendo compreendido, é feito objeto de ridículo entre os descrentes. Nestas circunstâncias, falar da doutrina Cristã como sendo um sistema secreto é um completo absurdo. Mas que deva haver certas doutrinas, não descobertas à multidão, que o são depois que o profano é ensinado, não é uma peculiaridade apenas do Cristianismo, mas também de sistemas filosóficos nos quais certas verdades são exotéricas e outras são esotéricas.
Alguns dos ouvintes de Pitágoras se contentavam com seu ipse dixit, enquanto que outros eram ensinados em segredo naquelas doutrinas que não eram consideradas próprias para serem comunicadas aos ouvidos profanos e insuficientemente preparados. Além disso, todos os Mistérios que são celebrados em toda a Grécia e em todos os países bárbaros, embora mantidos em segredo, não sofrem de nenhum descrédito, de modo que é vão que ele procure caluniar as doutrinas secretas do Cristianismo, constatando-se que ele não compreende corretamente sua natureza” (Origen against Celsus, livro I, cap. VII – A.-N.C.Libr, vol. X).
É impossível negar que nesta importante passagem Orígenes nitidamente coloca os Mistérios Cristãos na mesma categoria dos do mundo Pagão, e invoca que aquilo que não é considerado como um descrédito em relação a outras religiões não deveria constituir motivo de ataque quando encontrado no Cristianismo.
Ainda escrevendo contra Celso, ele declara que os ensinamentos secretos de Jesus foram preservados na Igreja, e se refere especificamente às explicações que Ele deu a Seus discípulos a respeito de Suas parábolas, ao responder á comparação de Celso entre “os Mistérios internos da Igreja de Deus” e o culto egípcio aos animais. “Ainda não falei da observância de tudo o que está escrito nos Evangelhos, cada um dos quais contém muita doutrina difícil de ser entendida, não apenas pela multidão, mas mesmo por alguns dos mais inteligentes, incluindo uma profundíssima explicação das parábolas que Jesus aplicava ‘àqueles de fora’, ao mesmo tempo reservando a exibição de seu pleno significado àqueles que haviam passado pelo estágio do ensino exotérico, e que vinham a Ele em privado na casa. E quando estes passam a entendê-la, admiram a razão pela qual alguns são ditos ser ‘de fora’ e outros ‘de casa’ (Origen against Celsus, livro I, cap. VII).
E ele se refere discretamente à “montanha” de onde Jesus ascendeu, e de onde Ele desceu para auxiliar “aqueles que eram incapazes de seguí-Lo para onde foram os Seus discípulos”. A alusão é à “Montanha da Iniciação”, uma frase mística bem conhecida, do mesmo modo que Moisés fez o Tabernáculo segundo o modelo “mostrado a ti no monte” (Êxodo, XX, 40; XXVI, 30, e compare-se com Hebreus, VIII, 5, e IX, 25). Orígenes se refere novamente a isto mais tarde, dizendo que Jesus mostrou-se bem diferente, em sua aparência real quando estava na “Montanha”, daqueles que O viram e não podiam “seguí-Lo tão alto” (Origen against Celsus, livro IV, cap. XVI).
Igualmente em seu comentário sobre o Evangelho de Mateus, capítulo XV, tratando do episódio da mulher sírio-fenícia, Orígenes assinala: “E talvez, também, das palavras de Jesus existam alguns pães que são passíveis de serem dados somente aos mais racionais, como se fosse a crianças; e outras haja como se fossem migalhas da mansão e mesa dos bem-nascidos, que podem ser usadas por algumas almas semelhantes a cães”.
A Celso, que lamentava que pecadores fossem trazidos para dentro da Igreja, Orígenes responde dizendo que a Igreja tinha o remédio para os que estavam doentes, mas também o estudo e conhecimento das coisas divinas para aqueles que estavam sãos. Os pecadores eram ensinados a não pecar, e somente quando era visto que havia sido feito progresso, e os homens estivessem “purificados pela Palavra”, “então, e não antes, nós os convidamos à participação em nossos Mistérios. Pois nós falamos sabedoria entre os que são perfeitos” (Origen against Celsus, livro III, cap. LIX). Os pecadores vêm para serem curados: “Pois existe na divindade do Verbo alguns auxílios para a cura dos que estão doentes... (Existem) outros, ainda, que ao puro de alma e corpo exibem a ‘revelação do Mistério, que foi mantido secreto desde que o mundo começou, mas que agora foi feito manifesto pelas Escrituras dos profetas’, e ‘pelo aparecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo’, cuja ‘aparição’ é manifesta a cada um dos que são perfeitos, e que ilumina a razão no verdadeiro conhecimento das coisas” (Origen against Celsus, livro III, cap. LXI).
Tais aparições de Seres divinos tinham lugar, como vimos, nos Mistérios Pagãos, e aqueles da Igreja tinham igualmente visitantes gloriosos. “Deus, o Verbo”, ele diz, “foi enviado como um médico para os pecadores, mas como um Instrutor dos Mistérios Divinos para aqueles que já são puros, e que não pecam mais” (Ibid., cap. LXII). “A sabedoria não entrará na alma de um homem vil, nem irá residir em um corpo que está imerso no pecado”; daí que estes ensinamentos elevados são dados apenas àqueles que são “atletas na piedade e em todas as virtudes”.
Os Cristãos não admitiam o impuro neste conhecimento, mas diziam: “Quem quer que haja limpado as mãos, e, portanto, ergue mãos limpas para Deus... que venha a nós... quem quer que seja puro não somente de todo aviltamento, mas também do que é considerado como transgressões menores, que seja intrepidamente iniciado nos Mistérios de Jesus, que são feitos propriamente conhecidos somente aos santos e aos puros”. Também assim, antes que a cerimônia de Iniciação começasse, aquele que atuava como Iniciador, de acordo com os preceitos de Jesus, o Hierofante, fazia a significativa proclamação “àqueles que foram purificados no coração: Aquele cuja alma desde há muito tempo não tem consciência de nenhum mal, especialmente desde que sujeitou-se à cura pelo Verbo, que este ouça as doutrinas que eram ditas em privado por Jesus a Seus genuínos discípulos”. Esta era a abertura das portas da “Iniciação, dos que já estavam purificados, para os sagrados Mistérios” (Origen against Celsus, livro III, cap. LX). Só estes poderiam aprender as realidades dos mundos invisíveis, e poderiam entrar nos recintos sagrados onde, como antigamente, os anjos eram os instrutores, e onde o conhecimento era dado pela visão e não pelas palavras. É impossível não perceber o tom diferente destes Cristãos em relação aos seus sucessores modernos. Para aqueles a perfeita pureza de vida, a prática da virtude, o cumprimento da Lei divina em cada detalhe na conduta exterior, a perfeição da justiça, eram – assim como para os Pagãos – somente o início do caminho ao invés de seu final. Hoje em dia considera-se que a religião completou gloriosamente seu objetivo quando produz um Santo; assim foi aos Santos que devotou suas mais altas energias, e, tomando os puros de coração, levava-os à Visão Beatífica.
O mesmo fato do ensinamento secreto aparece novamente quando Orígenes discute os argumentos de Celso sobre a sabedoria de preservar costumes ancestrais, baseada na crença de que “as várias regiões da Terra foram desde o início entregues a diferentes Espíritos superintendentes, e foram assim distribuídas entre certos Poderes diretores, e deste modo a administração do mundo é levada adiante” (Origen against Celsus, livro V, cap. XXV – A.- N.C.Libr., vol. XXIII).
Tendo Orígenes condenado as deduções de Celso, prossegue: “Mas como imaginamos ser provável que alguns daqueles acostumados a investigações mais profundas se deparem com este tratado, arrisquemos a deixar algumas considerações de um tipo mais profundo, com uma visão mística e secreta a respeito da distribuição original das várias regiões da Terra entre diferentes Espíritos superintendentes” (Ibid., cap. XXVIII). Ele diz que Celso havia entendido mal as razões mais profundas a respeito do arranjo dos assuntos terrenos, algumas das quais são abordadas mesmo na história grega. Então ele cita o Deuteronômio, XXXII, 8-9,: “Quando o Altíssimo dividiu as nações, quando Ele dispersou os filhos de Adão, estabeleceu os limites dos povos de acordo com o número dos Anjos de Deus; e a porção do Senhor foi Seu povo Jacó, e Israel a linhagem de Sua herança”. Este é o fraseado da edição Septuaginta, não a da Inglesa Autorizada, mas é muito sugestivo de que o título de “Senhor” fosse atribuído ao Anjo Regente dos Judeus, apenas, e não ao “Altíssimo”, isto é, Deus. Esta visão desapareceu, pela ignorância, e disto deriva a inadequação de muitas das declarações que se referem ao “Senhor”, quando são transferidas ao “Altíssimo”, como por exemplo em Juizes, I, 19 [“O Senhor estava com Judá, e ele conquistou a montanha, porém não pôde despojar os habitantes da planície, que possuíam carruagens de ferro” – NT].
Orígenes então relata a história da Torre de Babel, e continua: “Mas muito poderia ser dito sobre estes assuntos, e coisas de tipo místico, como o que segue: ‘É bom ocultar o segredo de um rei’, Tobias, XII, 7, ‘a fim de que a doutrina da entrada das almas nos corpos (porém não a da transmigração de um corpo para outro) não seja divulgada ao entendimento comum, nem o que é santo dado aos cães, nem pérolas jogadas aos porcos. Pois tal procedimento seria ímpio, sendo equivalente a uma traição das declarações misteriosas da sabedoria de Deus... É suficiente, contudo, representar no estilo de uma narrativa histórica, com uma vestimenta de história, o que é planejado para veicular um significado secreto, para que aqueles que têm capacidade desenvolvam por si mesmos tudo o que se relaciona ao assunto” (Origen against Celsus, livro V, cap. XXIX – A.-N.C.Libr., vol. XXIII). Ele então expõe mais completamente a história da Torre de Babel, e escreve: “Porém, a seguir, se alguém tiver capacidade, que entenda aquilo que assume a forma de história, e que contém algumas coisas que são literalmente verdade, embora ao mesmo tempo veicule um significado mais profundo...” (Ibid., cap. XXXI).
Depois de tentar mostrar que o “Senhor” era mais poderoso do que os outros Espíritos superintendentes de diferentes partes da Terra, e que ele enviou seu povo para ser punido vivendo debaixo do domínio de outros poderes, e depois alinhou-os com todas as nações menos favorecidas que podiam ser reunidas, Orígenes conclui dizendo: “como observamos previamente, estas declarações devem ser entendidas como sendo feitas por nós com um sentido oculto, indicando os erros daqueles que asseveram... “ (Ibid., cap. XXXII) como o fez Celso.
Depois de assinalar que “o objetivo do Cristianismo é que nos tornemos sábios” (Ibid., cap. XIV), Orígenes prossegue: “”Se consultamos os livros escritos depois do tempo de Jesus, veremos que aquelas multidões de crentes que ouviram as parábolas são, como se diz, “de fora’, e dignos apenas das doutrinas exotéricas, enquanto que os discípulos aprendem em privado a explicação das parábolas. Pois privadamente Jesus descerrou todas as coisas aos Seus discípulos , estimando acima das multidões aqueles que desejavam conhecer Sua sabedoria. E Ele promete àqueles que acreditam n’Ele torná-los homens sábios e escribas... E Paulo também em seu catálogo dos ‘Charismata’ outorgados por Deus, colocou em primeiro lugar ‘a Palavra da sabedoria’, e em segundo, como sendo-lhe inferior, a ‘palavra do conhecimento’, mas em terceiro, e mais abaixo, a ‘fé’. E porque ele considerava ‘a palavra’ mais alto do que os poderes miraculosos, ele por esta razão coloca a ‘operação de milagres’ e os ‘dons de cura’ em um lugar mais baixo do que os dons da ‘Palavra’ “ (Ibid., cap. XLVI).
O Evangelho em verdade ajudava o ignorante, “mas não é impedimento algum para o conhecimento de Deus, antes é uma assistência, ter sido educado, e ter estudado as melhores opiniões, e ser sábio” (Ibid., caps. XLVII e LIV). Assim, para o inculto, “eu tento melhorá-lo também com o melhor de minha habilidade, embora eu não deseje construir a comunidade Cristã a partir de tais materiais. Pois eu busco de preferência os que são mais sagazes e argutos, porque são capazes de compreender o significado dos ditos mais difíceis”(Ibid., cap. LXXIV). Aqui expusemos claramente a antiga idéia Cristã, inteiramente de acordo com as considerações apresentadas no Capítulo I deste livro. No Cristianismo existe espaço para o ignorante, mas ele não foi planejado somente para estes, e tem ensinamentos mais profundos para os “sagazes e argutos”.
É para estes últimos que ele tem grande empenho em mostrar que as Escrituras Cristãs e Judaicas têm significados ocultos, velados debaixo de histórias cujo significado exterior ele repele como absurdos, aludindo à serpente e a árvore da vida, e “as outras declarações que se seguem, que poderiam em si conduzir um leitor cândido a ver que todas estas coisas têm, não impropriamente, um significado alegórico” (Ibid., livro IV, cap. XXXIX).
Muitos capítulos são devotados a estes sentidos alegóricos e místicos, escondidos debaixo das palavras do Velho e do Novo Testamentos, e ele alega que Moisés, como os Egípcios, contou histórias que ocultavam o significado” (Origen against Celsus, livro I, cap. XVII e outros – A.-N.C.Libr., vol X). “Aquele que lida candidamente com as histórias” – este é o cânone geral de interpretação de Orígenes – “e deseje se preservar de ser confundido por elas, exercitará seu julgamento sobre a quais declarações dará seu consentimento, e o que aceitará figuradamente, procurando descobrir a intenção dos autores destas invenções, e contra quais declarações ele preservará suas crenças, como tendo sido escritas para a gratificação de certos indivíduos. E dissemos isto como antecipação a respeito de toda a história relatada nos Evangelhos a respeito de Jesus” (Ibid., cap. XIII). Uma grande parte de seu Livro IV é tomada por ilustrações das explicações místicas das histórias das Escrituras, e qualquer um que deseje seguir o assunto pode lê-lo.
No De Principiis, Orígenes dá como sendo o ensinamento recebido da Igreja “que as escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus, e tendo um significado, não apenas aquele aparente á primeira vista, mas também um outro, que escapa da percepção da maioria. Pois aquelas (palavras) que são escritas são as formas de certos Mistérios, e as imagens das coisas divinas. A este respeito existe uma única opinião em toda a Igreja, de que toda a lei é em verdade espiritual; mas que o significado espiritual que a lei veicula não é conhecido de todos, mas só àqueles em quem a graça do espírito Santo é outorgada na palavra da sabedoria e do conhecimento” (De Principiis, prefácio, p. 8 – A.- N.C.Libr., vol. X). Aqueles que lembram o que já foi citado verão na “Palavra de sabedoria” e na “palavra do conhecimento” as duas instruções místicas típicas, a espiritual e a intelectual.
NO Livro IV de De Principiis, Orígenes explica longamente suas concepções sobre a interpretação da Escritura. Ela tem um “corpo”, que é “o senso histórico e comum”; uma “alma”, um significado figurado a ser descoberto pelo exercício do intelecto; e um “espírito”, um sentido interno e espiritual, a ser conhecido somente por aqueles que têm “a mente de Cristo”. Ele considera que coisas incongruentes e impossíveis são inseridas na história para estimular um leitor inteligente, e compeli-lo a buscar uma explicação mais profunda, enquanto que as pessoas simples a lerão sem perceber as dificuldades (Ibid., cap. I).
O Cardeal Newman, em seu Arians of the Fourth Century, faz certas declarações interessantes sobre a Disciplina Arcani, mas, com o ceticismo profunda e indelevelmente enraizado do século XIX, ele não pode acreditar de todo nas “riquezas da glória do Mistério”, ou provavelmente nem por um momento concebeu a possibilidade da existência de tais esplêndidas realidades. Mesmo sendo ele um crente em Jesus, e as palavras da promessa de Jesus sendo claras e definidas: “Eu não vos deixarei sem conforto; Eu virei a vós. Ainda um pouco mais, e o mundo já não Me verá; mas vós me vereis: porque Eu vivo, e viverei. Naquele dia devereis saber que Eu estou no meu Pai, e vós em Mim, e Eu em vós” (João, XIV, 18-20). A promessa foi amplamente cumprida, pois Ele veio a eles e os ensinou em Seus Mistérios; lá eles O viram, embora o mundo já não O visse, e reconheceram o Cristo neles, e sua vida como a do Cristo.
O cardeal Newman reconhece uma tradição secreta, transmitida desde os Apóstolos, mas ele considera que consistia das doutrinas Cristãs, mais tarde divulgadas, esquecendo que aqueles que eram informados de que ainda não estavam prontos para recebê-la (a doutrina secreta) não eram pagãos, nem mesmo catecúmenos, mas membros plenos e comungantes da Igreja Cristã.
Assim ele diz que esta tradição secreta foi mais tarde (divulgada com autoridade e perpetuada sob a forma de símbolos”, e foi corporificada “nos credos dos primeiros Concílios” (Loc. cit., cap. I, seç. III, p. 55). Mas como as doutrinas nos credos são encontráveis nos Evangelhos e nas Epístolas, esta posição é completamente insustentável, tudo isto já tendo sido divulgado ao mundo amplamente; e os membros da Igreja certamente estavam instruídos de tudo a respeito de todas elas. As repetidas declarações a respeito do sigilo se tornam sem sentido se explicadas desta forma. O Cardeal, entretanto, diz que o que quer que “não tenha sido autenticado desta forma, seja informação profética ou comentário sobre as antigas dispensações, é, pelas circunstâncias do caso, perdido para a Igreja” (Loc. cit., cap. I, seç., III, pp. 55-56). Isto é muito provável, de fato é certamente verdadeiro, até onde interessa à Igreja, mas não obstante é recuperável.
Comentando sobre Irineu, que em sua obra Contra as Heresias dá muita ênfase sobre a existência de uma Tradição Apostólica na Igreja, o Cardeal escreve: “Ele então passa a falar da clareza e poder de persuasão das tradições preservadas na Igreja, como contendo a verdadeira sabedoria dos perfeitos, da qual fala São Paulo, e à qual pretendem os Gnósticos. E, na verdade, (mesmo) sem provas formais da existência e da autoridade nos primeiros tempos de uma Tradição Apostólica, é claro que deve ter havido uma tal tradição, supondo que os Apóstolos conversassem, e seus amigos tivessem lembranças, como outros homens. É de todo inconcebível que eles não tivessem sido levados a arranjar as séries de doutrinas reveladas mais sistematicamente do que as registram nas Escrituras, assim que seus seguidores foram expostos aos ataques e más interpretações dos heréticos; a menos que tenham sido proibidos disto, uma suposição que não se sustenta.
Suas declarações surgidas nestas circunstâncias obviamente seriam preservadas, juntamente com os outros segredos, mas que eram verdades de menor importância, aos quais São Paulo parece aludir, e que os primeiros escritores mais ou menos reconhecem, seja a respeito dos modelos da Igreja Judaica, ou dos destinos futuros da Cristã. E tais recordações dos ensinamentos apostólicos evidentemente seriam imperativas sobre a fé daqueles que eram instruídos nelas; a menos que se possa supor que, embora provindo de instrutores inspirados, não fossem de origem divina” (Ibid., pp. 54,55). Em uma parte da seção que trata do método alegórico, ele escreve em referência ao sacrifício de Isaac, etc, como sendo “típico da revelação do Novo Testamento”: “Em reforço a esta declaração, seja observado que parece ter havido (‘parece ter havido’ é uma expressão algo fraca, depois do que é dito sobre Clemente e Orígenes, dos quais algumas citações são dadas no texto) na Igreja uma explicação tradicional destes modelos históricos, derivada dos Apóstolos, mas mantidas entre as doutrinas secretas, por serem perigosas à maioria dos ouvintes; e certamente São Paulo, na Epístola aos Hebreus, nos dá um exemplo desta tradição, tanto como existente quanto como secreta (mesmo sendo mostrado ser de origem Judaica), quando, primeiro provando-se e questionando a fé de seus irmãos, comunica, não sem hesitação, a visão evangélica da passagem sobre Melquisedec, do modo como foi introduzida no livro do Gênesis” (Ibid., p. 62).
As convulsões sociais e políticas que acompanharam a morte do Império Romano agora começavam a torturar sua vasta moldura, e mesmo os Cristãos foram colhidos no torvelinho dos interesses egoístas em combate. Ainda encontraremos referências esparsas ao conhecimento especial concedido aos líderes e instrutores da Igreja, conhecimento das hierarquias celeste, instruções dadas por anjos, e assim por diante. Mas a ausência de discípulos aceitáveis fez com que os Mistérios se extinguissem como uma instituição cuja existência era reconhecida publicamente, e o ensinamento passou a ser dado mais e mais secretamente àquelas almas mais e mais raras, que pela cultura, pureza e devoção se mostravam capazes de recebê-lo. Já não havia escolas onde os ensinamentos preliminares fossem dados, e com seu desaparecimento “a porta foi fechada”.
Não obstante pode-se detectar duas correntes na Cristandade, as quais tiveram suas fontes nos Mistérios desaparecidos. Uma era a corrente do aprendizado místico, fluindo da Sabedoria, da Gnose transmitida nos Mistérios; outra era a corrente da contemplação mística, igualmente parte da Gnose, conduzindo ao êxtase, à visão espiritual. Esta última, contudo, divorciada do conhecimento, raramente atingiu o verdadeiro êxtase, e tendeu ou a correr desenfreada para as regiões mais baixas dos mundos invisíveis, ou perder-se entre uma variegada multidão de formas sutis superfísicas, visíveis como aparições objetivas à visão oculta – forçada prematuramente por jejuns, vigílias e atenção concentrada – mas em sua maioria nascidas dos pensamentos e emoções do vidente. Mesmo quando as formas observadas não eram pensamentos externalizados, eram vistas através de uma atmosfera distorcedora de idéias e crenças preconcebidas, e assim tornadas largamente indignas de crédito. Não obstante, algumas das visões foram veramente de coisas celestiais, e Jesus realmente apareceu de tempos em tempos aos Seus amantes devotados, e anjos algumas vezes iluminaram com sua presença a cela do monge e da freira, a solitude do devoto apaixonado e do paciente buscador de Deus. Negar a possibilidade de tais experiências seria amputar na própria raiz aquilo “que tem sido acreditado com mais certeza” em todas as religiões, e é conhecido dos ocultistas – a intercomunicação entre Espíritos encerrados na carne e aqueles revestidos de vestimentas mais sutis, o contato de mente com mente através das barreiras da matéria, o desabrochar da divindade no homem, o conhecimento seguro de uma vida além dos portões da morte.
Olhando pelos séculos não vemos tempo algum em que a Cristandade estivesse de todo privada de mistérios. “Foi provavelmente em torno do final do século V, bem na época em que a antiga filosofia estava morrendo na Escola de Atenas, que a filosofia especulativa do Neoplatonismo estabeleceu-se definitivamente no pensamento Cristão através das falsificações literárias do Pseudo-Dionísio. As doutrinas do Cristianismo estavam naquela altura tão firmemente estabelecidas que a Igreja poderia encarar uma interpretação simbólica ou mística delas sem ansiedade. O autor da Theologica Mystica e de outras obras atribuídas ao Areopagita passa, assim, a desenvolver as doutrinas de Proclo sem muita modificação em um sistema de Cristianismo esotérico.
Deus é o Ser inominável e supra-essencial, acima da própria bondade. Daí a ‘teologia negativa’, que sobe da criatura até Deus retirando um após outro todos os atributos determinados, e que nos conduz para mais perto da verdade. O retorno para Deus é a consumação de todas as coisas e a meta indicada pelo ensino Cristão. As mesmas doutrinas foram pregadas com maior fervor eclesiástico por Máximo, o Confessor (580-622). Máximo representa quase a última atividade especulativa da Igreja grega, mas a influência dos escritos do Pseudo-Dionísio foi transmitida para o Ocidente no século IX por Erígena, em cujo espírito especulativo tiveram origem tanto o escolasticismo quanto o misticismo da Idade Média. Erígena traduziu Dionísio para o latim junto com os comentários de Máximo, e seu sistema é essencialmente baseado no deles. É adotada a teologia negativa, e Deus é considerado um Ser sem atributos, acima de todas as categorias, e portanto não impropriamente chamado de Nada. Fora deste Nada ou essência incompreensível é criado eternamente o mundo das idéias ou causas primordiais. Este é o Verbo ou Filho de Deus, em quem existem todas as coisas, até onde possuam existência substancial. Toda a existência é uma teofania, e como Deus é o início de todas as coisas, também é seu final.
Erígena ensina o resgate de todas as coisas sob a forma da adunatio ou deificatio Dionisiana. Estas são as linhas gerais permanentes do que pode ser chamado a filosofia do misticismo nos tempos Cristãos, e é notável a escassez de variação com que são repetidas de era em era” (Artigo sobre Misticysm, in Encyclopaedia Britannica).
No século XI Bernardo de Claraval (1091-1153) e Hugo de São Victor continuaram a tradição mística, com Richard de São Victor no século seguinte, e São Boaventura, o Doutor Seráfico, e o grande Tomás de Aquino (1227-1274) no século XIII. Tomás de Aquino domina a Europa da Idade Média, pela força de seu caráter não menos do que por sua erudição e piedade. Ele estabelece a “Revelação” como uma fonte de conhecimento, sendo a Escritura e a tradição os dois canais por onde corre, e a influência, perceptível em seus escritos, do Pseudo-Dionísio o conecta aos Neoplatônicos. A segunda fonte é a Razão, e aqui os canais são a filosofia Platônica e os métodos de Aristóteles – este uma aliança que não fez bem ao Cristianismo, pois Aristóteles se tornou um obstáculo para o progresso do pensamento superior, o que se evidencia nas lutas de Giordano Bruno, o Pitagórico. Tomás de Aquino foi canonizado em 1323, e o grande Dominicano permanece como um modelo da união da teologia e da filosofia – o anelo de sua vida. Eles pertencem à grande Igreja da Europa ocidental, e sustentam sua reivindicação de ser considerada a transmissora da tocha santa do ensinamento místico. Em torno dela também se disseminaram muitas seitas, julgadas heréticas, mas que continham tradições verdadeiras do sagrado conhecimento secreto, como os Cátaros e muitos outros, perseguidos por uma Igreja ciumenta de sua autoridade, temerosa de que as pérolas santas passassem à custódia profana. Também naquele século Santa Elisabeth da Hungria rebrilha com doçura e pureza, enquanto que Eckhart (1260-1329) prova ser um digno herdeiro das Escolas Alexandrinas.
Eckhart ensinou que “a Divindade é a Essência (Wesen) absoluta, incognoscível não só pelos homens, mas também por Si mesmo; Ela é escuridão e absoluta indeterminação, Nicht, em contraste a Icht, ou existência definida e cognoscível. Mas é a potencialidade de todas as coisas, e Sua natureza, num processo triádico, passa à consciência de Si como o Deus trino.
A criação não é um ato temporal, mas uma necessidade eterna da natureza divina”. Eckhart se compraz em dizer que “eu sou necessário para Deus, assim como Deus é necessário para mim. Em meu conhecimento e amor Deus conhece e ama a Si mesmo” (Verbete Mysticism; Encyclopaedia Britannica).
Eckhart é seguido, no século XIV, por John Tauler e Nicolas de Basel, “o amigo de Deus em Oberland”. Deles nasceu a Sociedade dos Amigos de Deus, verdadeiros místicos e seguidores da antiga tradição. Mead assinala que Tomás de Aquino, Tauler e Eckhart seguiram o Pseudo-Dionísio, que seguiu Plotino, Jâmblico e Proclo, que por sua vez seguiram Platão e Pitágoras (Mead, Orpheus, pp. 53-54). Deste modo são interligados os seguidores da Sabedoria em todas as eras. Foi provavelmente um “Amigo” o autor da Die Deustche Theologie, um livro de devoção mística, que teve o curioso destino de ser aprovado por Schaupitz, o Vigário-Geral da ordem Agostiniana, que foi recomendado a Lutero e pelo próprio Lutero, que o publicou em 1516, como um livro que deveria estar logo depois da Bíblia e dos escritos de Santo Agostinho de Hipona. Um outro “Amigo” foi Ruysbroeck, cuja influência em Groot foi devida à fundação dos Irmãos do Quinhão Comum ou da Vida Comum – uma Sociedade que deve permanecer sempre memorável, já que tinha entre seus membros aquele príncipe dos místicos, Thomas a Kempis (1380-1471), o autor da imortal Imitação de Cristo.
No século XV o lado mais puramente intelectual do misticismo desponta mais fortemente do que o extático – tão dominante nestas sociedades do século XIV – e temos o Cardeal Nicolau de Cusa, junto com Giordano Bruno, o martirizado cavaleiro errante da filosofia, e Paracelso, o caluniadíssimo cientista, que retirou seu conhecimento diretamente das fontes orientais originais, em vez de através de canais gregos.
O século XVI presenciou o nascimento de Jacob Böhme (1575-1624), o “remendão inspirado”, verdadeiramente um Iniciado em obscurecimento, dolorosamente perseguido por homens não iluminados; e então veio Santa Teresa, a oprimidíssima e sofredora mística espanhola; e São João da Cruz, uma flama ardente de intensa devoção; e São Francisco de Sales. Roma foi sábia ao canonizá-los, mais sábia que a Reforma, que perseguiu Böhme, mas o espírito da Reforma foi sempre intensamente antimístico, e onde quer que seu alento tenha passado as formosas flores do misticismo murcharam como debaixo do Sirocco.
Assim, embora tendo apoiado, canonizando, uma Teresa morta, depois de tê-la atormentado amargamente em vida, a Igreja procedeu pior com Madame de Guyon (1648-1717), uma verdadeira mística, e com Miguel de Molinos (1627-1696), digno de sentar-se ao lado de São João da Cruz, que continuou no século XVII a alta devoção do místico, transformada em uma forma peculiarmente passiva – o Quietismo.
Neste mesmo século surgiu a escola dos Platônicos em Cambridge, de quem Henry More (1614-1687) pode servir como exemplo eminente; também Thomas Vaugham, e Robert Fludd, o Rosacruz; e lá foi formada ainda a Sociedade dos Filadelfos, e vemos William Law (1686-1761) ativo no século XVIII, e ultrapassando Saint-Martin (1743-1803), cujos escritos fascinaram tantos estudantes do século XIX (Aqui devo prestar reconhecimento ao artigo Mysticism da Encyclopaedia Britannica, embora esta publicação não possa de modo algum ser responsabilizada pelas opiniões expressas).
Nem devemos omitir Christian Rosenkreutz (morto em 1484), cuja mística Sociedade da Rosa e da Cruz, aparecida em 1614, tinha verdadeiro conhecimento, e cujo espírito renasceu no “Conde de Saint-Germain”, a misteriosa figura que apareceu e desapareceu na melancolia, iluminada por lúgubres lampejos, do final do século XVIII. Também místicos foram alguns Quakers, a muito perseguida seita dos Amigos, procurando a iluminação da Luz Interior, e ouvindo sempre a Voz Interior. E houve muitos outros místicos, “de quem o mundo não foi digno”, como a completamente adorável e sábia Mãe Juliana de Norwich, do século XIV, jóias da Cristandade, escassamente conhecidas, mas justificando o Cristianismo diante do mundo.
Assim, ao mesmo tempo em que saudamos reverentes estas Crianças da Luz, espalhadas pelos séculos, somos forçados a reconhecer nelas a ausência daquela união de intelecto agudo e alta devoção que seriam fundidos pelo treinamento nos Mistérios, e enquanto nos maravilhamos de que tenham se alçado tão alto, não podemos senão desejar que tivessem seus raros dons sido desenvolvidos debaixo da magnífica disciplina arcani.
Alphonse Louis Constant, mais conhecido por seu pseudônimo Eliphas Levi, expressou muito bem a perda dos Mistérios, e a necessidade de sua reinstituição. “Um grande infortúnio se abateu sobre a Cristandade. A traição dos Mistérios pelos falsos Gnósticos – pois Gnósticos, isto é, aqueles que sabem, eram os Iniciados do Cristianismo primitivo – fizeram com que a Gnose fosse rejeitada, e alienaram a Igreja das supremas verdades da Kabbala, que contém todos os segredos da teologia transcendental... Que a ciência mais absoluta, que a mais excelsa razão, se tornem uma vez mais o patrimônio dos líderes dos povos; que a arte sacerdotal e a arte régia tomem o duplo cetro das antigas iniciações, e o mundo social será uma vez mais tirado de seu caos.
Chega de queimar as imagens, basta de derrubar os templos; templos e imagens são necessários para os homens; mas expulsem os mercenários da casa de oração; que o cego deixe de ser o líder para os cegos, reconstrua-se a hierarquia de inteligência e santidade, e reconheçam somente aqueles que sabem como instrutores dos que crêem” (The Mysteries of Magic, trad. para o inglês de A.E.Waite, pp 58 e 60).
Retomarão as Igrejas de hoje o ensinamento místico, os Mistérios Menores, preparando assim seus filhos para o restabelecimento dos Mistérios Maiores, atraindo mais uma vez o Anjos para ensinar, e tendo como Hierofante o Divino Mestre, Jesus? Da resposta a esta pergunta depende o futuro do Cristianismo.