P: O que ensina o Buddhismo com relação à alma?
T: Depende, se a referência é ao Buddhismo exotérico, popular, ou a seus ensinamentos esotéricos. O primeiro explica, no Catecismo Buddhista: "Considera a alma como uma palavra empregada pelo ignorante para expressar uma idéia falsa. Se cada coisa está sujeita a mudança, deve-se incluir, então, ao homem, e cada parte material dele deve mudar. O que está sujeito à troca não é permanente, portanto, uma coisa inconstante não pode ter uma sobrevivência imortal".
Isto parece claro e definido. Mas quando chegamos à questão de que a nova personalidade em cada renascimento sucessivo é o agregado dos skandhas, ou atributos da antiga personalidade, e perguntamos se essa nova agregação de skandhas é também um novo ser, onde não restou nada do último, lemos que: "Em determinado sentido, é um novo ser e em outro não é.
Durante esta vida os skandhas mudam continuamente. Enquanto que o homem A.B., de quarenta anos, com relação à personalidade é idêntico ao jovem A.B., de dezoito, sem dúvida, pelo desgaste e reparação contínuos de seu corpo e a mudança de inteligência e caráter, é um ser diferente. Não obstante, em sua velhice, o homem recolhe com justiça a recompensa ou os sofrimentos correspondentes a seus pensamentos e ações de cada período anterior da vida. Da mesma maneira, o novo ser, sendo em cada renascimento a mesma individualidade de antes (mas não a mesma personalidade), com uma forma diferente, ou nova agregação de skandhas, recolhe com justiça as conseqüências de seus atos e pensamentos em uma existência anterior.”
Isto é metafísica abstrusa, e de modo nenhum expressa a negação da alma.
P: O "Buddhismo esotérico" não fala de algo parecido?
T: Sim, porque esta doutrina pertence tanto ao Buddhismo esotérico - ou Sabedoria Secreta - quando ao Buddhismo exotérico - ou filosofia religiosa de Gautama Buddha.
P: Mas sempre nos disseram claramente que a maior parte dos buddhistas não crê na imortalidade da alma.
T: Nós também não acreditamos nela, se você se refere por alma ao ego pessoal ou alma de vida (Nephesh). Mas todo buddhista culto acredita no Ego individual, ou divino. Os que não crêem nele equivocam-se em seu julgamento. Enganam-se com relação a esse ponto, da mesma forma que os cristãos que confundem as interpelações teológicas dos últimos redatores dos Evangelhos, sobre a condenação e o fogo do inferno, com a linguagem "ao pé da letra" de Jesus. Nem Buddha, nem Jesus, jamais escreveram coisa alguma, e ambos se expressaram alegoricamente, usando "palavras obscuras", como aliás fizeram e farão ainda por muito tempo, todos os verdadeiros iniciados. As Escrituras de ambos tratam de todas essas questões metafísicas com muita prudência e cautela; e os anais buddhistas e cristãos pecam por esse excesso de exoterismo, ambos abusando do sentido da letra morta.
P: Está pretendendo dizer que nem os ensinamentos de Buddha, nem os de Cristo foram corretamente interpretados até agora?
T: É precisamente o que penso. Os Evangelhos de ambos foram pregados com o mesmo objetivo. Os dois reformadores foram ardentes filantropos e altruístas práticos, pregando - sem nenhuma dúvida — o Socialismo mais nobre e elevado, o próprio sacrifício, até o último momento da vida. "Recaiam sobre mim os pecados do mundo inteiro, a fim de que possa aliviar as misérias e sofrimentos do homem" — exclama Buddha ... - "Eu não deixaria gemer a quem pudesse salvar" diz o príncipe mendigo, coberto de farrapos recolhidos dos cemitérios. - - "Venham a mim todos os que trabalham e estão abatidos e eu lhes darei descanso"; assim chama aos pobres e deserdados o "homem das angústias", que não tinha onde descansar a cabeça. Ambos baseiam seus ensinamentos no amor ilimitado à humanidade, na caridade, no perdão das injúrias, no esquecimento de si mesmo e na piedade pelo povo enganado; ambos manifestam o mesmo desprezo às riquezas e não fazem diferença entre meu e teu. O desejo era — mesmo sem revelar a todos os sagrados mistérios da iniciação — atrair os ignorantes extraviados, cuja carga na vida fora excessiva; dar-lhes esperança e fazê-los entrever o suficiente da verdade, para que fosse um auxílio em suas horas mais penosas. Mas o objetivo dos dois reformadores foi frustrado pelo excesso de zelo de seus discípulos posteriores. Pela má compreensão e interpretação das palavras dos Mestres, olhe as conseqüências!
P: Sem dúvida Buddha deve ter negado a imortalidade da alma, já que todos os orientalistas e seus próprios sacerdotes o afirmam.
T: Os arhats, no princípio, seguiram o sistema de seu Mestre; mas a maioria dos sacerdotes que lhes sucederam não tinha sido iniciada, como também aconteceu no Cristianismo; e foi assim, pouco a pouco, que quase chegaram a se perder as verdades esotéricas. A prova disso é que das duas seitas existentes no Ceilão, a siamesa crê que a morte é o aniquilamento absoluto da individualidade e da personalidade; e a outra explica o Nirvana no sentido em que nós o fazemos.
P: Mas nesse caso, por que representam o Buddhismo e o Cristianismo os dois pólos opostos dessa crença?
T: Porque as condições em que foram pregadas não eram iguais. Os brâhmanes da índia eram zelosos de sua superior sabedoria, excluindo dela as demais castas, o que acarretou a precipitação de milhares de homens na idolatria e quase no fetichismo. Buddha teria que dar o golpe de misericórdia a uma exuberância tão grande de fanática superstição e de fantasia malsã, nascidas da ignorância, como poucas vezes se tem visto na história, antes ou depois. Mais vale um ateísmo filosófico do que tal culto ignorante, para aqueles
"que invocam a seus deuses, não são ouvidos
nem atendidos"
e vivem e morrem em estado de desespero mental. Teria que conter, antes de mais nada, aquela lamacenta e corrompida torrente de superstição; extirpar os erros, antes de dar a conhecer a verdade. E por não poder dá-la a conhecer toda, pelas mesmas boas razões que teve Jesus quando disse aos discípulos que os Mistérios do Céu não eram para as massas ignorantes, mas apenas para os eleitos, e por isso, "lhes falava em parábolas" (Mat. XIII, 10, 11), também Buddha levou sua prudência até o extremo de ocultar demais. Até se negou a contestar o monge Vaochagotta, se existia ou não um Ego no homem. Instado a que contestasse, "o homem sublime permaneceu silencioso"[1].
P: isto se refere a Gautama, mas que relação tem com os Evangelhos?
T: Leia a história e reflita. No tempo em que aconteceram os fatos descritos no Evangelho, existia uma fermentação intelectual análoga em todo o mundo civilizado, só que com resultados opostos no Oriente e no Ocidente.
Os antigos deuses morriam. Enquanto as classes civilizadas na Palestina se deixavam arrastar pelos incrédulos saduceus às negações materialistas, somente pela letra morta da forma mosaica, e Roma se achava em plena dissolução moral, as classes pobres e inferiores corriam atrás de bruxarias e deuses estranhos, ou tornavam-se hipócritas. Mais uma vez havia soado a hora de uma reforma espiritual. O Deus receoso, cruel e antropomórfico dos judeus, com suas sanguinárias leis de "olho por olho e dente por dente", derramando sangue e sacrificando animais, teria que ser relegado a segundo plano e ver-se substituído pelo misterioso "Pai Secreto".
Este último teria que se apresentar, não como um Deus extracósmico, mas sim com um divino Salvador de carne e osso, guardado em seu próprio coração e alma, igual para o pobre e para o rico. Nem aqui, nem na índia, poderiam os segredos da iniciação ser divulgados, a menos que, atirando pérolas aos porcos, se visse o Revelador e o revelado atirado ao solo, pisoteado e arrastado. Resultam daí as reticências de Buddha e de Jesus (que se absteve de revelar claramente os mistérios da Vida e da Morte). Essas reticências tiveram como resultado, no primeiro caso, as negações vazias do Buddhismo meridional; e, no segundo, as três formas contraditórias da Igreja cristã e as trezentas seitas existentes só na Inglaterra protestante.
[1] No diálogo traduzido por Oldenburg do Samyutaka Nikaya, Buddha dá a Ananda, seu discípulo iniciado que lhe pergunta a razão deste silêncio, uma resposta clara e inequívoca: "Se eu, Ananda, ao perguntar-me o monge errante Vacchagotta, 'existe o Ego?', tivesse respondido 'o Ego existe', então, Ananda, isto teria confirmado a doutrina dos samanas e brâhmanes que crêem na permanência. Se eu, Ananda, quando o monge errante Vacchagotta me perguntou 'não existe o Ego?', tivesse respondido 'o Ego não existe', então, Ananda, isto teria confirmado a doutrina dos que crêem na aniquilação. Se eu, Ananda, quando o monge errante Vacchagotta me perguntou 'existe o Ego?', lhe tivesse respondido 'o Ego existe': teria isto servido a meu propósito, Ananda, produzindo nele o conhecimento de que todas as existências (dhamma) são não-ego? Mas se eu, Ananda, tivesse respondido 'o Ego não existe', então, Ananda, isto teria somente dado como resultado produzir no monge errante Vacchagotta uma nova confusão. 'Meu Ego não existia antes? E agora eu não existo!' " Isto demonstra melhor do que tudo que Gautama Buddha evitava dar às massas semelhantes doutrinas metafísicas-difíceis, para não confundi-las ainda mais. Referiu-se era à diferença que existe entre o Ego pessoal, temporal, e o Eu Supremo que verte sua luz sobre o Ego imorredouro, o "Eu" espiritual do homem.