História de Um Incêndio

Enviado por Estante Virtual em dom, 22/01/2012 - 03:25

Um outro trabalho executado pelo mesmo menino Cyril apresenta um paralelo quase exato com alguns dos relatos dos livros que citei nas páginas antecedentes. Parece que, uma noite, ele e o seu amigo mais velho estavam tratando do seu trabalho usual, quando notaram em baixo o clarão de um grande incêndio, o que fez que imediatamente descessem, para ver se podiam prestar algum socorro.

Era um grande hotel que estava em chamas, um edifício imenso nas margens de grande lago. A casa de muitos andares de altura, constituía três lados de um Quadrado em torno a uma espécie de jardim plantado de árvores e de flores, enquanto o lago formava o quarto lado. Os dois braços do edifício estendiam--se até ao lago, e as grandes janelas nas extremidades quase que tinham uma saliência por cima da água, e, assim, ficava apenas um pedaço de terra muito estreito abaixo delas, quer de um lado, quer de outro.

A frente e os lados eram construídos em tomo a poços interiores, de modo que, uma vez começado o incêndio espalhou-se com uma rapidez incrível, e, antes dos nossos amigos o verem durante a viagem astral já os andares intermédios em todo o edifício eram pastos das chamas. Felizmente os hóspedes — exceto um pequenino — já tinham sido salvos, conquanto alguns deles tivessem recebido queimaduras e outras contusões.

O pequenino tinha ficado esquecido em um dos quartos superiores da ala direita, porque os pais estavam num baile e não sabiam do fogo, e, como era de esperar, ninguém mais se lembrou da criança, senão quando era já muito tarde. O fogo tinha atacado de tal maneira os andares médios, daquele lado, que nada se podia fazer para o salvar, mesmo se alguém se tivesse lembrado dele, visto que o seu quarto dava para o jardim interior, a que já nos referimos, de modo que ele se encontrava afastado de todo o auxílio de fora. Além disso, ele nem sequer dava pelo perigo que corria, porque o fumo denso e sufocante tinha tão gradualmente invadido o quarto, que o sono da criança pouco a pouco se tornara mais fundo até ela estar num estado de inconsciência total.

Neste estado o descobriu Cyril, que parece ser especialmente atraído para as crianças que correm risco ou estão em qualquer dificuldade. Principiou Cyril por ver se fazia alguém lembrar-se do pequeno, mas não o conseguiu; e, em qualquer hipótese, mal se podia conceber que eles o pudessem socorrer, de modo que isto não passava de uma perda de tempo. O auxiliar mais velho então materializou Cyril, como da outra vez, no quarto da criança, pô-lo a acordar e dar a consciência à criança mais do que entorpecida. Depois de bastantes dificuldades, isto de certo modo se conseguiu, mas o menino ficou, durante tudo que se seguiu, num estado semilúcido, ainda meio dormente, de modo que foi preciso empurrá-lo e guiá-lo, auxiliá-lo e socorrê-lo a cada volta que tinha que dar.

Os dois pequenos começaram por sair do quarto para o corredor central que atravessava a ala do edifício, mas, vendo que as chamas e o fumo, que surgiam do chão, o tornavam intransitável a um corpo Físico, Cyril fez o outro pequeno entrar outra vez para o quarto e sair pela janela para uma pequena saliência de pedra, de um pé de largura, que percorria toda a extensão do prédio um pouco abaixo das janelas. Por esta saliência fora, conseguiu ele guiar o seu companheiro, equilibrando-se em parte na extremidade da saliência e em parte pairando no ar, mas colocando-se sempre do lado de fora do outro, de modo a evitar-lhe uma tontura ou um receio de queda.

Perto do fim da parte mais próxima ao lago, onde o incêndio parecia ainda não ter pegado muito, entraram por uma janela adentro e tornaram a dirigir-se para o corredor, esperando ainda poder passar pela escada que havia nessa extremidade. Mas também esta estava cheia de fogo e de fumo; por isto voltaram ao corredor, aconselhando Cyril ao companheiro que conservasse a boca o mais baixa possível até que chegaram à gaiola do elevador ao centro daquela parte do prédio.

O elevador, é claro, estava no'fundo, mas eles conseguiram descer pelos rendilhados do ferro da gaiola até chegarem à parte de cima do elevador. Aqui viram-se com o caminho tapado, mas felizmente Cyril descobriu uma pequena porta, dando da gaiola do elevador para uma espécie de sobreloja pouco alta. Por essa porta passaram para um corredor, que percorreram, o menino quase sufocado pelo fumo; depois, atravessando um dos quartos saíram pela janela, encostando-se na varanda que existia em toda a extensão do pés-do-chão, entre eles e o jardim.

Dali foi-lhes fácil descer por uma das colunas e ir para o jardim; mas mesmo ali o calor era intenso e o perigo, quando as paredes começassem a ceder, considerável. Por isso Cyril tentou guiar o pequeno à roda da extremidade de uma, e depois da outra, das alas; mas, em ambos os casos, as chamas tinham rompido, e era impossível seguir pelo pequeno espaço de-baixo das janelas que davam para o lago. Por fim refugiaram-se em um dos botes de recreio que estavam no final de uns degraus que desciam de uma espécie de cais ao fim do jardim; largando dali, remaram para fora.

Cyril tencionava remar contornando a ala que estava a arder e desembarcar a criança salva; mas ao afastarem-se um pouco da terra, deram com um vapor de carreiras no lago e foram vistos — pois toda a cena estava iluminada pelo clarão do hotel em chamas, até que tudo estava claro como o dia. O vapor aproximou-se do bote para tirar de lá os rapazes; mas em vez dos dois que tinham visto, os tripulantes só encontraram um — pois o seu amigo mais velho tinha prontamente deixado Cyril regressar à sua forma astral, desvanecendo a matéria mais densa que lhe tinha dado temporariamente um corpo material e por isso ele ficou invisível.

Foi feita uma busca muito cuidadosa, mas não se encontrou sinal do segundo pequeno, de modo que se concluiu que ele devia ter caído do barco, morrendo afogado, momentos antes dos tripulantes alcançarem o bote. A criança salva perdeu os sentidos ao chegar a bordo do vapor, de modo que não podia dar informação nenhuma e, quando voltou a si, não pôde dizer senão que tinha visto o outro menino pouco antes de ser salvo, e que não sabia senão isso.

O vapor seguia para uma povoação à margem do lago, a uns dois dias de viagem, de modo que se passou uma semana ou mais antes que a criança salva pudesse ser restituída aos pais, os quais, é claro, julgaram que ele tinha morrido no incêndio, porque, conquanto se fizesse esforço para lhes impressionar no espírito a noção de que o seu filho estava salvo, não se conseguiu fixar neles essa idéia; e, assim, bem se pode calcular a alegria com que eles receberiam a notícia da salvação do pequeno.

O menino continua sendo uma criança sadia e feliz, e nunca se cansa de relatar a sua extraordinária aventura. Muitas vezes tem mostrado pena de que o amigo que o salvou tivesse perecido tão misteriosamente, quando todo o perigo já parecia ter passado. O menino até chegou a dizer que talvez ele não morresse realmente — que não fosse senão um príncipe das fadas; mas é claro que esta idéia não arranca senão sorrisos de tolerante superioridade da parte dos seus adultos. O elo cármico entre ele e o seu salvador ainda não se descobriu, mas deve sem dúvida existir.

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