Quando as nações surgiram uma a uma sobre a terra, cada qual recebeu de Deus uma palavra especial, palavra com que dirigir-se ao mundo, palavra singular que vem do Eterno e que cada uma deve pronunciar. Ao passarmos os olhos pela história das nações, podemos sentir ressoar da boca coletiva do povo esta palavra que, expressa em atos, constitui a contribuição de cada nação para uma humanidade ideal e perfeita. Para o antigo Egito, tal palavra foi Religião; para a Pérsia, Pureza; para a Caldéia, Ciência; para a Grécia, Beleza; para Roma, Lei; e para a índia, o mais velho de Seus filhos, para a índia Ele concedeu uma palavra que a todas resumia, a palavra Dharma. Eis a palavra da índia para o mundo.
Mas não podemos pronunciar esta palavra tão rica de significados, tão imensa pela força que encerra, sem nos lançarmos aos pés daquele que é a mais alta personificação do Dharma que o mundo jamais conheceu — sem nos lançarmos aos pés de Bhishma, filho de Ganga, a mais grandiosa das encarnações do Dever.
Acompanhem-me por um momento, recuando cinco mil anos no tempo, e então vejam este herói recostado em seu leito de flechas no campo de batalha de Kurukshetra, a Morte ali a rondá-lo enquanto não chega a hora favorável. Passamos por entre pilhas e pilhas de guerreiros massacrados, por montanhas de cavalos e elefantes mortos, muitas e muitas piras funerárias, muitas e muitas pilhas de armas e carros de combate destroçados. Chegamos ao herói, estendido em seu leito de flechas, varado por centenas delas, a cabeça descansando contra uma almofada de setas. Pois ele recusou os travesseiros macios de pena que lhe trouxeram e aceitou somente a almofada de setas preparada por Arjuna. Bhishma, que tinha um Dharma perfeito, havia feito, quando mal passava ainda de uma criança, em consideração a seu pai, em consideração ao dever de filho que tinha para com ele, em consideração ao amor que lhe devia, a grandiosa promessa de renunciar à vida em família, de renunciar à coroa a fim de que a vontade do pai fosse realizada e seu coração satisfeito. E Shantanu concedeu-lhe então a graça, a bênção divina, de que a Morte não o alcançaria senão quando ele próprio a chamasse, quando ele próprio desejasse morrer. Quando ele caiu, varado por centenas de setas, o sol se encontrava em sua declinação austral e o momento não era propício para que morresse alguém que não deveria mais voltar. Assim, usou o poder que seu pai havia lhe dado e manteve a morte à distância até que o sol viesse abrir o caminho para a paz e a liberdade eternas. Ali, estendido por dias e dias que se arrastavam, martirizado por seus ferimentos, torturado pela aflição do inútil corpo que vestia, vieram ter a ele muitos Rishis e remanescentes dos reis Ários, para ali dirigindo-se também Shri Krishna, a fim de ver o fiel guerreiro. Para ali vieram os cinco príncipes, filhos de Pandu, vencedores da grande guerra, e o rodearam chorando e velando, ansiosos por receber seus ensinamentos. Ao que se consumia no tormento atroz, chegaram as palavras d'Aquele cujos lábios eram os lábios de Deus, e Ele o livrou da febre ardente e concedeu-lhe repouso ao corpo e lucidez de espírito e calma interior, ordenando-lhe então que ensinasse ao mundo o que era o Dharma — justamente a ele, que por toda a vida jamais deixara de ensiná-lo, jamais se afastara do justo caminho e que tanto como filho, príncipe, homem de estado ou guerreiro, jamais deixara de trilhar a estreita senda. Suas lições foram solicitadas pelos que o rodeavam e Vasudeva pediu-lhe que falasse do Dharma, já que ele era digno de ensiná-lo (Mahabharata, Shanti Parva, § LI V).
Então os filhos de Pandu, encabeçados por Yudhisthira, o mais velho dos irmãos e líder da hoste de guerreiros que haviam ferido mortalmente, Brishma, aproximaram-se dele; Yudhisthira temia aproximar-se mais e fazer perguntas por pensar que, como eram realmente suas as setas e como por sua causa é que; haviam sido disparadas, ele era o culpado pelo sangue que se esvaía de seu irmão mais velho, e por essa razão não convinha solicitar-lhe ensinamentos. Percebendo a sua hesitação, Bhishma, cujo espírito sempre fora equilibrado, que sempre trilhara o difícil caminho do dever sem se deixar afastar para a esquerda ou para a direita, pronunciou estas memoráveis palavras: "Assim como o dever dos Brahmanas consiste na prática da caridade, no estudo e na penitência, o dever dos Kshattriyas é sacrificar seus corpos nas batalhas. Um Kshattriya deve ser capaz de imolar pais e avós e irmãos e preceptores e parentes e aliados que com ele venham medir forças em batalha injusta. Ë este o seu dever declarado. Um Kshattriya, ó Keshava, pode dizer que conhece a fundo o seu dever quando numa batalha imola até mesmo os seus preceptores, se estes se mostraram cheios de pecados e concupiscência e negligenciaram suas promessas e juramentos. . . Pergunta-me, ó filho, sem temor algum". Então, do mesmo modo como Vasudeva, ao se referir a Bhishma, lhe reconhecera o direito de falar como mestre, o próprio Bhishma, por sua vez, ao dirigir-se aos príncipes, apresentou as qualidades necessárias àqueles que desejam esclarecimentos acerca do problema do Dharma:
"Que o filho de Pandu, possuidor de inteligência, autodomínio, brahmacharya, misericórdia, justiça, energia e vigor espiritual, faça as suas perguntas a mim. Que o filho de Pandu, que por seus bons ofícios sempre honra seus familiares e hóspedes e servos e outros que dele dependem, faça as suas perguntas a mim. Que o filho de Pandu, em quem se encontram a verdade e a caridade e as penitências, o heroísmo, a calma, a inteligência e o destemor faça as suas perguntas a mim" (Ibid., § L V).
Eis aí algumas das características do homem que deseja compreender os mistérios do Dharma. São estas as qualidades que eu e vocês devemos tentar desenvolver a fim de que possamos compreender os ensinamentos, a fim de que possamos ser dignos de solicitá-los.
Então, começou um magnífico discurso, um discurso sem paralelo entre os discursos da terra. Trata-se dos deveres dos Reis e súditos, dos deveres das quatro classes, dos quatro modos de vida, deveres para homens de todas as espécies, deveres distintos uns dos outros e apropriados a cada estágio da evolução. Todos vocês deveriam conhecer, deveriam estudar esse magnífico discurso, não apenas por sua beleza literária mas por sua grandeza moral. Se pudéssemos tão-somente seguir a senda traçada por Bhishma, a nossa evolução acelerar-se-ia e a índia veria aproximar-se a aurora de sua redenção. Quanto à moral — assunto estreitamente relacionado ao Dharma e que não se pode compreender sem que se saiba o que significa o Dharma — quanto à moral, pensam alguns que se trata de coisa muito simples. E assim é, se considerada apenas em seus traços mais gerais. As fronteiras entre o certo e o errado nos atos comuns da vida são claras, simples e definidas. Para o homem pouco desenvolvido, para o homem de inteligência curta, para o homem de parcos conhecimentos, a moral parece ser uma coisa muito simples. Mas para os que possuem saber profundo e inteligência superior, para os que evoluem rumo a níveis superiores de humanidade, para os que desejam compreender os seus mistérios, para estes a moral é algo bastante complexo: "A moral é muito sutil", como disse o príncipe Yudhisthira quando chamado a resolver o problema do casamento de Draupadi com os cinco filhos de Pandu. E alguém de maior prestígio ainda que este príncipe se referiu ao problema; Shri Krishna, o Avatar, em discurso pronunciado no campo de batalha de Kurukshetra, falou precisamente desta questão da dificuldade de agir. Disse:
"O que é a ação? O que é a inação? Quanto a isso, até mesmo os sábios.se confundem. É necessário discriminar a ação, a ação ilícita, e a inação; misteriosa é a senda da ação" (Bhagavad-Gita, iv. 16-17).
Misteriosa é a senda da ação: misteriosa, posto que a moral não é, como pensam os pobres de espírito, uma só e a mesma para todos, posto que ela varia segundo o Dharma de cada indivíduo. O que é certo para um é errado para outros. E o que é errado para uns é certo para outros. A moral é algo individual, que depende do indivíduo que age e não do que às vezes chamam "o bem e o mal absolutos". Nada existe de absoluto num universo condicionado. O bem e o mal são relativos e devem ser julgados levando-se em conta o indivíduo e seus deveres. Foi por isso que o maior dos Mestres — e isso nos guiará pelo tortuoso caminho —disse do Dharma: "Mais vale o próprio Dharma, ainda que desprovido de méritos, que o Dharma de um outro perfeitamente cumprido. Mais vale a morte que sobrevêm ao cumprir-se o próprio Dharma, pois o Dharma de outro está cheio de perigos" (Ibid., iv. 35).
Torna ele a repetir este mesmo pensamento ao final de seu memorável discurso, desta vez mudando os termos a fim de lançar nova luz sobre o assunto, e dizendo: "Mais vale o próprio Dharma, embora desprovido de méritos, que o Dharma de um outro bem cumprido. Aquele que se ajusta ao Karma prescrito pela sua própria natureza não se expõe ao pecado". (Ibid., xviii. 47.) A seguir, explica mais detalhadamente este ensinamento e nos indica, um por um, os Dharmas das quatro grandes castas, sendo que a própria maneira por que Ele se exprime nos revela o sentido desta palavra, que às vezes é traduzida por Dever, às vezes por Lei, às vezes por Retidão, às vezes por Religião. Ela significa tudo isso e muito mais, pois o seu sentido é ainda mais profundo e vasto do que podem exprimir cada uma destas palavras separadamente. Sejam as palavras de Shri Krishna sobre o Dharma das quatro castas: "Aos Brahmanas, Kshattriyas, Vaishyas e Shudras, ó Parantapa, foram os Karmas distribuídos de acordo com os gunas nascidos de suas próprias naturezas. A serenidade, o autodomínio, a austeridade, a pureza, a misericórdia e também a lealdade, a sabedoria, o conhecimento e a crença em Deus constituem o Karma do Brahmana, nascido de sua própria natureza. A coragem, o esplendor, a firmeza, a destreza e também o destemor na luta, a generosidade, as qualidades de soberano constituem o Karma do Kshattriya,'nascido de sua própria natureza. A agricultura, o pastoreio e o comércio constituem o Karma do Vaishya, nascido de sua própria natureza. Agir como servidor é próprio do Karma do Shudra, nascido de sua própria natureza. O homem atinge a perfeição pela dedicação de cada ser ao seu próprio Karma".
Em seguida, diz ele: "Mais vale o próprio Dharma, embora desprovido de mérito, que o Dharma de um outro bem cumprido. Aquele que se ajusta ao Karma prescrito pela sua própria natureza não se expõe ao pecado".
Observem como as duas palavras, Dharma e Karma, podem ser tomadas uma pela outra. Elas nos proporcionam as chaves de que precisamos para desvendar o nosso problema. Que me seja permitido lhes dar em primeiro lugar uma definição apenas parcial do Dharma. Não posso, de uma só vez, apresentar uma definição completa. Apresentarei agora a primeira metade e tratarei da segunda quando chegar o momento oportuno. A primeira metade é a seguinte: "Dharma é a natureza interior que alcançou, em cada indivíduo, um certo grau de desenvolvimento e florescimento". É esta natureza interior que modela a vida exterior e se faz expressar por pensamentos, palavras e atos, natureza interior que nasce em um meio favorável ao seu posterior crescimento. A primeira idéia a ser apreendida é a de que o Dharma não é algo exterior, algo como a lei, a virtude, a religião, a justiça. E a lei da vida evolutiva, a que modela pela sua própria imagem tudo o que lhe é exterior.
Agora, a fim de elucidar este tema difícil e abstruso, eu o dividirei em três partes principais. Diferenças é a primeira delas, uma vez que as pessoas possuem diferentes Dharmas. Até mesmo na passagem anteriormente citada se pode discernir quatro grandes classes. Reparando melhor, cada indivíduo possui o seu próprio Dharma. Como compreendê-los a todos? Se não compreendermos até certo ponto algo acerca da natureza das diferenças, acerca do que as produziu, da sua razão de ser, do que entendemos quando falamos em diferenças; se não compreendermos como cada indivíduo demonstra por meio de seus pensamentos, palavras e ações o estágio por ele alcançado; se não compreendermos tudo isso, não chegaremos a entender o Dharma. A seguir, teremos que nos haver com a Evolução, teremos que rastrear estas diferenças à medida que elas evoluem. Por último, devemos tratar do problema do Bem e do Mal, pois a finalidade do nosso estudo é conduzir à resposta para a questão: "Como um homem deveria conduzir a sua vida?". Seria inútil pedir-lhes que me acompanhassem em pensamentos de natureza complexa se ao final não pudéssemos colocar em prática os conhecimentos adquiridos e nos esforçar por viver de acordo com o Dharma, mostrando ao mundo o que à índia coube ensinar.
Em que consiste a perfeição de um Universo? Quando começamos a refletir acerca do universo e do que entendemos por essa palavra, acabamos por imaginar um vasto número de objetos trabalhando juntos em maior ou menor harmonia. A variedade é a nota distintiva do universo, assim como a unidade é o que distingue o Não-Manifesto, o Incondicionado — o Uno sem par. A diversidade é a nota do manifesto e do condicionado — o resultado da vontade de ser muitas coisas.
Quando um Universo está prestes a se tornar uma realidade, aprendemos, a Causa Primeira, Eterna, Inconcebível, Indiscernível e Sutil brilha por Sua própria Vontade. O que esta irradiação significa em Si mesma é algo que ninguém se atreveria a conjecturar. Podemos, sim, apreender o que ela significa a partir de certa face por que a consideremos. Ishvara surge, envolto no entanto pelo véu de Maya — são dois aspectos do Supremo que se manifestam. Muitas palavras têm sido usadas para expressar esse par de opostos elementar: Ishvara e Maya, Sat e Asat, Realidade e Irrealidade, Espírito e Matéria, Vida e Forma. São palavras de que nos servimos, em nossa insuficiente linguagem, para expressar aquilo que o nosso entendimento pode tão-só conceber. Tudo o que podemos dizer é: "Assim nos ensinaram os Sábios, e assim humildemente repetimos".
Ishvara e Maya. O que deve ser o universo? É a imagem de Ishvara refletida em Maya — a imagem fiel de Ishvara, posto que Ele escolheu condicionar-se a este universo particular cuja hora de nascer chegou. Sua imagem — limitada, condicionada. A sua imagem Autocondicionada, eis o que deve manifestar perfeitamente o universo. Mas como poderia o que é limitado e parcial refletir Ishvara? Pela multiplicidade das partes trabalhando juntas em um todo harmonioso. A infinita variedade das diferenças e as múltiplas combinações de umas e outras expressarão a lei do pensamento divino até que o pensamento seja integralmente expresso pela totalidade do Universo tornado perfeito. Tentemos captar algo do que isso pode significar. Busquemos juntos a fim de que possamos compreendê-lo.
Ishvara pensa na Beleza; prontamente a sua energia formidável, onipotente e fecunda sensibiliza Maya e a transforma em miríades de formas de objetos que chamamos belos. Esta energia vem tocar a matéria pronta a ser moldada, como a água, por exemplo — e a água assume milhões de formas do Belo. Podemos distinguir uma delas na vasta extensão do oceano, serena e calma, onde vento nenhum sopra e o céu se espelha em seu âmago profundo. Surpreendemos uma outra forma do Belo quando o vento, vindo de encontro a esta superfície, vem gerar vaga após vaga, abismos e mais abismos, até que essa massa de água se torne terrível em toda sua fúria e majestade. Então, surge daí uma nova forma do Belo, ao se aquietarem as águas raivosas e espumantes e se transmudar o oceano em miríades de ondulações a luzir e reluzir sob o luar, cujos raios se partem e se fazem refratar em milhares de pontos cintilantes. Isso nos proporciona mais uma sugestão sobre o sentido da Beleza. Em seguida, contemplamos uma vez mais o oceano, cujo horizonte nenhuma terra limita e cuja infinita extensão nada interrompe, e ainda junto à praia observamos as ondas rebentarem-se a nossos pés. A cada mudança, o regime das águas do oceano expressa uma nova idéia de Belo. Um outro lampejo da idéia de Beleza expressa pelas águas é o que surpreendemos em um lago alpestre, na imobilidade e serenidade de sua calma superfície; e no arroio a correr por entre rocha e rocha; e na correnteza que se desfaz em milhares de gotas, captando e refratando a luz solar em todos os tons do arco-íris. Assim, da água, em todas as suas formas e aspectos, do mar encapelado ao iceberg congelado, da neblina cerrada às nuvens de magnífico colorido, resplende a idéia de Beleza que nela imprimiu Ishvara quando a palavra saiu de Si. Deixando a água, nos deparamos com outras expressões do Belo na figura de uma delicada planta trepadeira e sua massa de cores brilhantes, em plantas mais fortes, no robusto carvalho e na obscuridade dos recessos sombrios da floresta. Novas idéias do Belo nos chegam dos cimos montanhosos e das vastas e ondulantes pradarias, onde quer que a terra deixe entrever novas possibilidades de existência, das areias do deserto ao verdor da campina. Se nos enfada a terra, o telescópio nos traz ao alcance da visão a Beleza de miríades de sóis a gravitarem e a rodarem pêlos espaços infinitos. E então o microscópio revela ao nosso olhar assombrado a Beleza que há no infinitamente pequeno, como fez o telescópio com o infinitamente grande: assim, uma nova porta é-nos aberta para a contemplação do Belo. Temos à nossa volta centenas e milhares de objetos, todos belos. Na graça do animal, na força do homem, no doce encanto da mulher, na expressão da criança a sorrir, em tudo captamos alguns relances da idéia de Belo na mente de Ishvara. Desse modo, podemos compreender algo acerca da maneira pela qual o Seu pensamento se transforma em miríades de formas de esplendor, como quando Ele, feito Belo, fala ao mundo. O mesmo se passa no caso da
Força, da Energia, da Harmonia, da Música e assim por diante. Compreendeis agora por que a variedade deve existir: porque nenhum objeto limitado pode expressá-Lo integralmente, porque nenhuma forma limitada pode expressá-Lo integralmente. Na medida, porém, em que se aproximem da perfeição em seu gênero, as formas e objetos poderão, em conjunto, revelá-Lo parcialmente. Assim, a perfeição do Universo é perfeição da variedade e da harmonia das partes inter-relacionadas.
Ao chegarmos a uma tal concepção, começamos a nos dar conta de que o Universo somente pode alcançar a perfeição se cada uma de suas partes desempenhar a sua própria função e desenvolver integralmente a sua própria porção vital. Se a árvore tentasse imitar a montanha ou a água imitar a terra, elas perderiam a beleza que lhes é própria sem chegar a obter outra. A perfeição do corpo não depende de uma célula executar as funções das outras células, mas sim do fato de cada célula cumprir perfeitamente a sua própria funcho. Temos cérebro, pulmões, coração, órgãos digestivos e outros mais. Se o cérebro tentasse executar as funções do coração e os pulmões tentassem digerir os alimentos, o corpo ficaria com toda a certeza num estado lamentável. A Saúde do corpo é assegurada pelo fato de cada órgão cumprir a função que lhe cabe. Chegamos assim a constatar que, à medida que o universo se desenvolve, cada uma de suas partes segue o caminho ditado pela lei que governa a sua própria vida. A imagem de Ishvara na natureza jamais chegará a ser perfeita se cada uma de suas partes não se realizar em si mesma e nas suas relação com as demais.
Como surgem essas inumeráveis diferenças? Como chegam elas a se manifestar na existência? Como se dá a relação do Universo, evoluindo como um todo, com cada uma de suas partes, evoluindo estas segundo as trajetórias que lhe são próprias? Diz-se que Ishvara, expressando-se como Prakriti, manifesta três atributos: Sattva, Rajas e Tamas. Não há, em português, palavras equivalentes a estas ou capazes de traduzi-las satisfatoriamente. Mesmo assim, no momento traduzirei Tamas por inércia, o atributo daquilo que não se move, daquilo que proporciona a estabilidade; Rajas é o atributo da energia e do movimento e Sattva talvez seja melhor expresso por harmonia, atributo do que causa prazer, na medida em que todo prazer se origina da harmonia e somente a harmonia pode proporcioná-lo. A seguir, aprendemos que estes três gunas são posteriormente modificados de sete maneiras diferentes, sete grandes direções, de certa forma, dando lugar, além disso, a inumeráveis combinações. Todas as religiões referem-se a esta divisão em sete partes, todas as religiões proclamam a sua existência. Correspondem, na religião hindu, aos cinco grandes elementos que acrescidos de mais dois superiores constituem os sete Purushas de que fala Manu.
Desta diferença primária transmitida por um Universo do passado — pois um mundo se relaciona com outro mundo e um Universo com outro Universo — comprovamos que o fluxo vital se dividiu e se subdividiu ao se
precipitar na matéria, até que, ao alcançar a circunferência do enorme círculo, refluiu sobre si mesmo. A evolução principia neste momento decisivo em que o fluxo vital começa a retornar para Ishvara. O período precedente é um período de involução, durante o qual a vida começa por se enredar na matéria; é no decorrer da evolução que ela desenvolve as faculdades que lhe são inerentes. Podemos citar Manu, quando este diz que Ishvara depositou Sua semente nas águas grandiosas. A vida dada por Ishvara não era uma vida desenvolvida, mas uma vida passível de desenvolvimento. Tudo existe em germe, a princípio. Assim como o pai dá de sua vida para engendrar a criança, assim como essa semente de vida se desenvolve por variadas combinações até vir a nascer, e então, ano após ano, passa pela infância, juventude e idade adulta até que seja atingida a maturidade e de novo a imagem do pai se faça visível no filho; assim também, o Pai Eterno, ao depositar a semente no seio da matéria, dá a vida, mas uma vida ainda não desenvolvida. O germe inicia agora a sua ascensão, superando uma a uma as fases da vida, as quais ele gradualmente vai se tornando capaz de expressar.
Ao estudarmos o Universo, descobrimos que as suas variedades diferem quanto à idade. Este é,uni ponto que interessa ao nosso problema. Não foi em Virtude de uma palavra criadora que este mundo chegou ao seu estado atual. Foi lenta e gradualmente, ao cabo de longas meditações, que Brahma criou o mundo. Uma a uma surgiram as formas vivas, uma a uma foram se espalhando as sementes da vida. Se considerarmos um Universo qualquer num dado momento do tempo, descobriremos que a variedade deste Universo tem como fator principal o Tempo. A idade do germe em vias de desenvolvimento indicará o estágio por ele alcançado. Num Universo coexistem germes de várias idades e diferentes estágios de desenvolvimento. Existem germes mais jovens que os minerais, constituindo os assim chamados reinos elementares. Os germes em vias de desenvolvimento englobados na denominação de reino mineral são mais velhos que estes. Os germes que se desenvolvem pelo mundo vegetal são mais velhos que os germes que se desenvolvem pelo mundo mineral, isto é, possuem atrás de si um período maior de evolução; os animais são germes com um passado ainda maior atrás de si, e os germes que chamamos humanidade possuem um passado maior que o de todos os outros.
Cada grande classe apresenta essa diversidade quanto à sua origem no tempo. Da mesma forma, a existência separada e individual de um homem — não a existência essencial, mas aquela separada e individual — é diferente da de outro, sendo que nos distinguimos pela idade de nossas existências individuais como também pela idade de nossos corpos. A vida é uma só — uma só vida, afinal de contas; no entanto, ela implica diferentes estágios de tempo, se levarmos em conta o ponto de partida da semente que por ela crescerá. É preciso que essa idéia seja perfeitamente compreendida. Quando um Universo chega a seu fim, encontrar-se-ão nele entidades que alcançaram
os mais variados estágios de crescimento. Já disse que Um mundo se relacionava com outro mundo e um Universo com outro Universo. Algumas unidades encontrar-se-ão, a princípio, num estágio pouco adiantado da evolução; outras, prestes a se expandirem até a consciência de Deus. Este Universo registrará, quando chegar ao fim o seu período de vida, as mais variadas diferenças de crescimento, correspondentes a outras tantas diferenças de tempo. A vida é uma só para todas, mas o estágio de desenvolvimento de uma dada existência depende do tempo pelo qual ela evoluiu separadamente. E aí, precisamente, tocamos no nó da nossa questão — uma vida imorredoura, eterna, infinita tanto na origem como no fim; esta vida, no entanto, se manifesta em diferentes graus de evolução, em diferentes estágios de desenvolvimento, assim como também variam as faculdades inerentes que ela manifesta de acordo com a idade da existência separada. São estas as duas Idéias que precisam ser compreendidas para que em seguida possamos considerar o outro aspecto da definição de Dharma.
Dharma pode ser agora definido como a “natureza interior de uma coisa num dado momento dá evolução, bem como a lei que governa o seu estágio? seguinte de desenvolvimento” — a natureza, conforme, grau de desenvolvimento por ela alcançado, mais a fé que rege o seu estágio seguinte de desenvolvimento. A própria natureza determina o ponto da evolução por ela atingido; seguem-se as condições a que estão subordinados os seus progressos ulteriores. Tomemos estes dois pensamentos juntos e então compreenderemos por que somente o nosso próprio Dharma pode nos conduzir à perfeição. Meu Dharma é o estágio da evolução alcançado pela minha natureza, ao desenvolver aquela semente de vida divina que sou eu próprio, mais a lei da vida segundo a qual o estágio seguinte deverá ser vencido. Este diz respeito ao eu separado. Preciso saber em que estágio de crescimento me encontro, preciso conhecer a lei que me possibilitará crescer ainda mais; é então que passo a conhecer o meu Dharma, e é seguindo esse Dharma que me encaminho para a perfeição.
Torna-se claro, então, ao cuidarmos de seu significado, porque cada um de nós devemos avaliar a nossa condição atual em função do estágio seguinte. Se não conhecermos o presente estágio, forçosamente desconheceremos o estágio seguinte a que deveremos visar, e estaremos portanto agindo em desacordo com o nosso Dharma e por isso retardando a nossa evolução. Se, pelo contrário, conhecermos ambos, poderemos agir de acordo com o nosso Dharma e apressar a nossa evolução. E é nesse ponto que nos deparamos com uma grande cilada. Sabemos que uma coisa é boa, sublime e grandiosa, por isso passamos a querê-la para nós. Será esse o estágio seguinte da nossa evolução? É isso que a lei do nosso desenvolvimento vital exige para que essa vida possa se desenvolver harmoniosamente? Nosso objetivo imediato não é aquilo que é o melhor em si, mas sim o que é melhor para nós em função do estágio em que nos encontramos, o que nos faz avançar um passo a mais. Seja uma criança. Se é de uma menina que se trata, não há qualquer dúvida ,que ela tem diante de si um futuro muito mais elevado, nobre e belo do que o presente, no qual ela brinca com suas bonecas; ela será mãe e em vez de bonecas terá nos braços um bebê, pois não é outra a perfeição do ideal feminino: a mãe e seu filho. Mas se este é o perfeito ideal da mulher, ansiá-lo fora de hora é antes um mal do que um bem. Tudo tem sua hora e lugar certo. Se a esta mãe cabe se desenvolver até alcançar a perfeição da mulher, se a ela cabe tornar-se uma mãe de família, saudável e forte, preparada para suportar as pressões do avassalador fluxo vital, é necessário então que ela, quando criança, brinque com suas bonecas, tome suas lições, desenvolva o seu corpo. Mas se, tendo em mente a idéia de que a maternidade é algo superior e mais nobre do que as simples brincadeiras de criança, esta maternidade for alcançada fora da época certa e de uma criança nascer outra criança, a criança sofrerá, a mãe sofrerá e a nação sofrerá, isto porque a época certa não foi levada em conta e a lei do desenvolvimento vital foi violada. Sofrimentos de toda sorte decorrem quando o fruto é colhido sem estar maduro.
Menciono esse exemplo porque ele é digno de nota. Através dele, poderão compreender por que o nosso próprio Dharma é melhor do que o Dharma perfeitamente cumprido de um outro, que no entanto não se encontra no domínio do nosso desenvolvimento vital. Pode ser que o futuro nos reserve uma posição assim elevada, mas é preciso que chegue a hora certa, que o fruto amadureça.
Se o colhermos sem que ele esteja maduro, o seu gosto somente nos irritará. Deixemo-lo na árvore, obedecendo à lei do tempo e à ordem evolutiva, e a alma crescerá ao ímpeto de uma vida infindável.
Isso fornece mais uma chave para o nosso problema: a função está em relação direta com a faculdade. A função que é exercida antes de a faculdade se encontrar desenvolvida é algo extremamente pernicioso para o organismo. Aprendamos, pois, a ter paciência e a nos conformarmos com a Boa Lei. Podemos julgar o progresso de um homem pela sua boa-vontade de agir conforme à natureza e submeter-se à lei. Eis porque se se refere ao Dharma como a uma lei, e às vezes como um dever, pois ambas as idéias têm por raiz comum o princípio de que o Dharma é a natureza interior num dado momento da evolução e a lei que rege o período seguinte de desenvolvimento. Isso explica porque a moral é algo relativo, porque os deveres diferem para cada alma, segundo o estágio de sua evolução. Se aplicarmos isto às questões do bem e do mal, veremos que é possível resolver alguns dos mais sutis problemas de moral tratando-os de acordo com este princípio. Num universo condicionado, não existem o bem e o mal absolutos mas tão-somente o bem e o mal relativos. O absoluto não existe senão em Ishvara, e somente nele pode ser eternamente encontrado. As diferenças são, pois, necessárias para a nossa consciência condicionada. Pensamos por diferenças, sentimos por diferenças e conhecemos por diferenças. Ë somente por meio das diferenças que nos sabemos homens vivos e pensantes. A unidade não deixa qualquer impressão sobre a consciência. Diferenças e diversidades, eis o que torna possível o crescimento da consciência. A consciência não-condicionada escapa à nossa compreensão. Podemos pensar apenas dentro dos limites do separado e do condicionado.
Podemos ver agora como as diferenças se manifestam na natureza, como o fator tempo intervém e como, embora todos tenhamos a mesma natureza e busquemos a mesma meta, verificam-se diferenças em cada Um dos estágios da manifestação, e portanto nas leis apropriadas a cada estágio. Eis o que precisamos compreender esta noite, antes que passemos a tratar do complexo problema de como esta natureza interior se desenvolve. É um assunto realmente difícil, ainda que os mistérios que se apresentem pelo caminho da ação se façam esclarecer à medida que compreendermos a lei subjacente, à medida que reconhecermos o princípio da vida evolutiva.
Possa Ele, que à índia concedeu o Dharma como seu traço distintivo, iluminar com Sua vida ascendente e imortal, com Sua luz fulgurante e inalterável, estas nossas mentes obscuras que desajeitadamente buscam intuir a Sua lei; pois somente se a Sua bênção recai sobre ó suplicante que busca é que a Sua lei será entendida pela que a Sua lei será gravada no coração.