Deus tem o direito de perdoar?

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:49

P: A que está se referindo?

T: À doutrina da "expiação por procuração"; refiro-me a esse dogma perigoso em que acreditam, e que nos ensina que, por maiores que sejam nossos crimes contra as leis de Deus e do homem, basta-nos crer no sacrifício de Jesus pela salvação da humanidade, para que seu sangue nos deixe livres de toda mancha. Faz vinte anos que combato esta doutrina, e chamo a atenção sobre um parágrafo de Ísis sem Véu, escrito em 1875. Eis o que ensina o cristianismo e o que combatemos:

"A compaixão de Deus é ilimitada e insondável. É impossível conceber um pecado humano tão imenso que não possa apagá-lo o preço pago de antemão pela redenção do pecador, ainda que fosse mil vezes maior. E, além disso, nunca é demasiado tarde para se arrepender. Mesmo que o pecador espere até o último minuto da última hora do último dia de sua vida mortal, para que seus lábios frios pronunciem a confissão de fé, pode entrar no paraíso; assim o fez o ladrão moribundo, e todos os outros, tão perversos quanto ele, podem fazê-lo. Tais são as conjeturas da Igreja e do clero; conjeturas sustentadas ante seus compatriotas pelos pregadores favoritos da Inglaterra, em plena 'luz do século 19', o mais paradoxal de todos".

Pois bem: aonde conduz isto?

 

P: Não faz do cristão um homem mais feliz do que o buddhista ou o bramânico?

T: Não; pelo menos tratando-se de um homem culto, pois a maioria destes perderam virtualmente, há muito tempo, toda crença nesse dogma cruel. Mas conduz mais facilmente à beira de todo crime concebível àqueles que ainda acreditam nele, do que qualquer outro dos que conheço. Permita-me mais uma vez referir-me à obra Ísis (vol. II).

"Se nos colocamos fora do reduzido círculo das crenças e consideramos o universo como um todo governado pelo primoroso ajuste das partes, como se rebelam toda a lógica saudável e o sentimento mais elementar de justiça, contra a doutrina da expiação por proteção alheia! Se o criminoso pecasse somente contra si mesmo, e só a si próprio prejudicasse; se pudesse apagar os fatos passados com o arrependimento sincero, não só da memória do homem, mas também desse registro imperecível (que nenhuma Deidade — nem sequer a mais Suprema das Supremas — pode destruir), nesse caso, este dogma poderia não ser inconcebível. Mas manter que alguém pode prejudicar seu semelhante, matar, perturbar o equilíbrio da sociedade e a ordem natural das coisas, e, de repente, por covardia, esperança, por força ou pelo que for, encontrar o perdão, apenas por crer que o derramamento de um sangue lava outro, é um absurdo. Pode-se apagar os resultados de um crime, mesmo que este fosse perdoado? Os efeitos de uma causa jamais se circunscrevem aos limites dela mesma, nem podem os resultados do crime reduzirem-se ao ofensor e à sua vítima. Cada ação — boa ou má — tem seus efeitos, tão palpáveis como o de uma pedra atirada em água tranqüila. O exemplo é vulgar, mas é o que melhor explica: os círculos ondulatórios são mais sólidos ou mais rápidos, conforme o objeto que vem perturbá-la, mas a menor pedrinha, o objeto mais insignificante, produz suas ondas correspondentes. E a perturbação não é somente essa visível na superfície; embaixo, de maneira invisível e em todas as direções, a gota empurra a gota, até que as margens e o fundo sentem a força posta em ação. Mais ainda: o ar em cima da água é agitado, e, como nos dizem os físicos, essa perturbação passa indefinidamente, de camada a camada, no espaço; foi dado um impulso à matéria e este jamais se perde, jamais pode ser anulado!. . .

O mesmo acontece com relação ao crime e à virtude. A ação pode ser instantânea, os efeitos são eternos. Depois de haver caído a pedra no lago, quando possamos recolhê-la com a mão, repelir as ondas, anular a força imprimida, restabelecer as ondulações etéreas em seu prévio estado, e apagar todo o rastro produzido pelo fato de haver atirado um objeto, de maneira a que não conste nos anais do tempo o haver tido lugar tal ato, então poderemos ouvir pacientemente os cristãos defenderem a eficácia desta classe de "expiação", e deixar de acreditar na lei kármica. Mas, por enquanto, nos submetemos ao juízo do mundo inteiro para que decida qual das duas doutrinas aprecia melhor a justiça divina, qual é a mais razoável, até mesmo do ponto de vista da evidência e lógica humanas."

 

P: Sem dúvida, existem milhares de seres que crêem no dogma cristão e são felizes.

T: É efeito de um sentimentalismo que se sobrepõe às suas faculdades racionais, e que nenhum filantropo ou altruísta verdadeiro jamais aceitará. Não é sequer um sonho de egoísmo, mas sim um pesadelo da inteligência humana. Veja onde conduz, e cite-me o nome de um país pagão onde se cometam crimes mais facilmente ou em maior número do que nas nações cristãs. Repasse a longa e espantosa lista de crimes cometidos em países europeus, e observe a protestante e bíblica América. São mais numerosas as conversões conseguidas nos cárceres, do que através de atos e pregações públicos.

"Veja em que estado se encontra a grande balança da justiça cristã: (!) assassinos cheios de sangue, impulsionados pelos demônios da luxúria, da vingança, da inveja, do fanatismo; ou pelo simples desejo brutal de verter sangue, que muitas vezes matam as suas vítimas sem lhes dar tempo para arrepender-se ou invocar a Jesus. Talvez elas tenham morrido em pecado, e, naturalmente, de acordo com a lógica da Teologia, encontrarão o castigo de suas culpas — grandes ou pequenas. Mas o assassino, pilhado pela justiça humana e trancafiado na prisão, compadecido pelos sentimentalistas que rezam com e por ele, pronuncia as palavras mágicas da conversão, e sobe ao patíbulo redimido por Jesus. A não ser pelo assassinato, ninguém teria rezado com ele, nem se lhe teria redimido nem perdoado. Evidentemente, este homem fez bem em matar, porque desse modo alcançou a felicidade eterna! E o que sucede com a vítima, com sua família, com seus parentes, com seus amigos íntimos e com as relações sociais? A justiça não tem recompensa alguma para eles? Estão condenados a sofrer neste mundo e no próximo, enquanto quem lhes causou o dano está sentado ao lado do 'bom ladrão' do Calvário, bendito para sempre? Com relação a esta pergunta, o clero guarda um silêncio prudente[1]." E agora já sabe por que os teósofos - cuja crença fundamental e cuja esperança é a justiça para todos, tanto no céu como na terra (e o Karma) -, repelem este dogma.

 

P: Então não é um céu sobre o que Deus preside o destino último do homem, senão a transformação gradual da matéria em seu elemento primordial, o espírito?

T: A essa meta tende tudo na natureza.

 

P: Alguns de vocês não consideram essa associação ou "caída do espírito na matéria" como um mal, e o renascimento como uma dor?

T: Alguns sim, e, por conseguinte, esforçam-se por abreviar seu período de prova sobre a terra. Sem dúvida não é um mal completo, uma vez que assegura a experiência pela qual alcançamos o conhecimento e a sabedoria. Refiro-me a essa experiência que ensina que as necessidades de nossa natureza espiritual nunca podem ser satisfeitas por outros meios que não sejam de felicidade espiritual. Enquanto permanecemos no corpo, estamos sujeitos à dor, ao sofrimento e a todas as adversidades e desenganos que ocorrem durante a vida. Portanto, e para atenuar isto, adquirimos ao fim o conhecimento, que só pode nos proporcionar o alívio e a esperança de um futuro melhor.



[1] Ísis sem Véu, ibid.

 

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