Da recompensa e castigos eternos, e do nirvana

Enviado por Estante Virtual em dom, 02/12/2012 - 20:05

P: Julgo que é demasiado perguntar se acreditam nos dogmas cristãos do paraíso e do inferno, ou em recompensa e castigos futuros, conforme ensinam as Igrejas ortodoxas.

T: Não admitimos de forma alguma, pelo menos da forma como os apresentam seus catecismos; e menos ainda aceitaríamos sua eternidade. Mas acreditamos firmemente naquilo que chamamos a Lei de retribuição, na justiça e sabedorias absolutas que regem essa Lei, ou Karma. Portanto, negamo-nos positivamente a aceitar a crença cruel e antifilosófica da recompensa ou castigo eternos. Dizemos com Horácio:

"Fixem-se as regras que nosso furor reprimem E castiguem-se as culpas com pena proporcionada; Mas não destruais aquele que merece somente Uma chicotada pela falta cometida"

Esta é uma regra para todos os homens, e uma regra justa. Podemos crer que Deus, que segundo vocês é a personificação de toda a sabedoria, amor e misericórdia, tem esses atributo? em menor grau que o homem mortal?

 

P:  Dê algumas razões para repelir esse dogma.

T: Nosso motivo principal se apóia na reencarnação. Como já disse, não admitimos a idéia da criação de uma nova alma para cada criança recém-nascida. Acreditamos que todo ser humano é o veículo de um Ego, contemporâneo com todos os demais Egos; porque todos os Egos são da mesma essência, e pertencem à emanação primeira de um Ego Universal infinito. Este que é chamado por Platão de Logos (o segundo Deus manifestado); e que nós chamamos o princípio divino manifestado, que é uno com a inteligência ou alma universal; e não o Deus antropomórfico, extracósmico e pessoal, em quem tantos deístas acreditam. É preciso não confundir.

 

P: Mas por que, a partir do momento em que aceitam, um princípio manifestado, não acreditam que a alma de cada novo ser é criada por aquele Princípio, como o foram antes todas as almas?

T: Porque o que é impessoal mal pode criar, projetar e pensar a seu capricho. Existindo uma Lei universal, imutável em suas manifestações periódicas de radiação e expressão de sua própria essência, no princípio de cada novo ciclo ds vida, não se lhe pode atribuir a criação dos homens, com um único objetivo de se arrepender depois de alguns anos de havê-los criado. Se temos de acreditar em algum princípio divino, terá de ser naquele que representa a harmonia, a lógica e a justiça absolutas, como é o amor, a sabedoria e a imparcialidade absolutas; e um Deus que criasse a cada alma para uma vida de breve duração, sem se preocupar se havia animado o corpo de um homem rico e feliz, ou o de um pobre miserável que sofre, desgraçado do nascimento até a morte, sem haver feito nada para merecer seu destino cruel, melhor que um Deus, seria um demônio implacável[1]. Nem mesmo os filósofos judeus crentes na Bíblia mosaica (esotericamente se entende), jamais conceberam semelhante idéia. Além disso, como nós, acreditavam na reencarnação.

 

P: Pode dar alguns exemplos que provem isso?

T: Seguramente. Fílon diz (De Somiis, pág. 455): "O ar está cheio delas (de almas); as que se encontram mais perto da terra descem para ser unidas aos corpos mortais, palndrsmsuzinauqiz voltam a outros corpos, desejando viver neles". Conforme se vê no Zohar, a alma defende sua liberdade perante Deus: "Deus do Universo! - - diz - - sou feliz neste mundo e não desejo ir a outro, onde serei uma serva exposta a toda sorte de corrupções[2]". A doutrina da necessidade fatal, a imutável e eterna Lei, fica reafirmada na resposta da Deidade: "Contra tua vontade te convertes em embrião, e contra a tua vontade nasces[3]". Incompreensível seria a luz sem a escuridão que a faz manifesta pelo contraste; o bem, não seria o bem, sem o mal, que nos ensina a natureza inapreciável do primeiro; e a virtude pessoal nenhum mérito teria, se não tivesse passado precisamente pelas tentações.

Fora da Deidade oculta, não há nada eterno e permanente. Nada do que é finito — seja porque teve um princípio ou deve ter um fim —, pode ficar estacionado. Terá de progredir ou retroceder; e uma alma que aspira à reunião com seu espírito, único que pode conferir a imortalidade, terá de purificar-se através das transmigrações cíclicas, em seu caminho até a única região de glória e descanso eterno, chamada no Zohar, "O Palácio do Amor"; "Moksha" na religião hindu; "a plenitude da luz eterna", entre os gnósticos, e "Nirvana" entre os buddhistas. E todos estes estados não são eternos mas temporais.

 

P: Mas isto não se trata de reencarnação.

T: Uma alma que suplica se lhe conceda permanecer onde se encontra, deve ser preexistente, e não ter sido criada para aquela ocasião. Sem dúvida há outra prova melhor no Zohar. Falando dos Egos que se reencarnam (as almas racionais), aquelas cuja última personalidade há de desaparecer por completo, diz: "Todas as almas que não são inocentes neste mundo, no céu serão separadas do Santo Único - - bendito seja seu Nome —, serão precipitadas em um abismo, a risco de sua própria existência, e anteciparão o momento em que terão de voltar (mais uma vez), à terra". "O Santo Único" significa aqui, esotericamente, o Atmã ou Atma-Buddhi.

 

P: Acho muito estranho que nos falem do "Nirvana" como sinônimo do Reino dos Céus, ou paraíso, já que conforme os orientalistas famosos, o Nirvana é sinônimo de aniquilamento!

T: Considerando literalmente, com relação à personalidade e à matéria diferenciada, sim, mas nunca de outro modo. Estas idéias sobre a reencarnação e a trindade do homem foram sustentadas por muitos dos primeiros padres cristãos. A confusão originada pelos tradutores do Novo Testamento e dos antigos tratados filosóficos, acerca da alma e do espírito, foi a causa que produziu tantas desavenças e erros. É também uma das muitas razões por que Buddha, Plotino e tantos outros iniciados, são acusados atualmente de haver aspirado à extinção total de suas almas - - "a absorção na Deidade", ou "reunião com a alma universal", o que significa aniquilamento de acordo com as idéias modernas. Supõe-se, desta forma, que a alma pessoal tem que ser desintegrada em suas partículas, antes de que possa fundir para sempre sua existência mais pura com o Espírito imortal. Mas os tradutores dos Atos, bem como das Epístolas que apresentaram os fundamentos do Reino dos Céus; e os modernos comentadores do Sutra Buddhista da fundação do Reino da Justiça, alteraram o sentido tanto do grande apóstolo do Cristianismo, quanto do grande reformador da Índia. Os primeiros desfiguraram a palavra psichicos, de forma que nenhum leitor pode imaginar que tenha alguma relação com a alma; e o efeito dessa confusão entre a alma e o Espírito faz com que os que lêem a Bíblia só obtenham um falso sentido nesta matéria. Por outro lado, os intérpretes de Buddha não souberam compreender o significado e objetivo dos quatro graus buddhistas de Dhyâna.

Pergunte aos pitagóricos, se esse espírito que dá vida e movimento, e participa da natureza da luz, pode ser reduzido a não-entidade. Pode o espírito, sensível até nos animais que exercitam a memória, uma das faculdades racionais, morrer e voltar ao nada? — observam os ocultistas. Na filosofia buddhista, a aniquilação somente significa uma dispersão da matéria, em qualquer forma ou aparência de forma, porque tudo o que possui uma forma é temporal, e, portanto, realmente é uma ilusão. Para a eternidade, os mais longos períodos de tempo podem comparar-se a um abrir e fechar de olhos; o mesmo ocorre com relação à forma. Antes de termos tempo de dar conta de sua existência, já desapareceu para sempre, como o resplendor instantâneo do relâmpago. Quando a entidade espiritual rompe para sempre com cada partícula de matéria ou forma, e volta a ser um hálito espiritual, só então é que penetra no eterno e invariável Nirvana, vivendo tanto tempo como durou o ciclo de vida — verdadeiramente uma eternidade. E então aquele hálito, existindo em espírito, não é nada porque é tudo; como forma, aparência ou figura foi aniquilado por completo; como espírito absoluto ainda é, porque se converteu na Egoidade. A frase: "absorvido na essência universal", que se usa quando se fala da alma como espírito, significa: união com. Jamais pode significar aniquilamento, que implicaria em separação eterna.

 

P: Nessa linguagem que está sendo empregada, não estão se expondo à acusação de pregar o aniquilamento? Este último pensamento fala da alma do homem que volta a seus primeiros elementos.

T: Esqueceu-se de que tratamos das diferenças existentes entre os vários significados da palavra "alma" e demonstramos a imprecisão com que o termo "espírito" tem sido traduzido. Falamos da alma animal humana e espiritual; e as distinções entre elas. Platão, por exemplo, chama "alma racional" ao que nós chamamos Buddhi, acrescentando o adjetivo "espiritual"; mas ao que chamamos o Ego que se reencarna, manas, chama espírito, Nous etc.; e aplicamos o termo Espírito, somente e sem qualificação alguma, unicamente a Atmã. Pitágoras confirma nossa doutrina arcaica, ao dizer que o Ego (Nous) é eterno com a Deidade; que a alma só, passa por vários graus para alcançar a excelência divina, enquanto que thumos volta à terra, e até o phren, o manas inferior, acaba eliminado. Além disso, Platão define a alma (Buddhi), como "o movimento capaz de mover-se a si mesmo". "A alma — conclui — é a mais antiga de todas as coisas, e o princípio do movimento" (Leis X); chamando assim a Atma-Buddhi — alma, e a manas — espírito, o que nós também fazemos.

"A alma foi criada antes do corpo, e este é posterior e secundário, sendo, segundo a natureza, governado pela alma. A alma, que rege todas as coisas que se movem em cada direção, rege igualmente os céus. A alma, portanto, governa todas as coisas no céu e na terra, assim como no mar, por seus movimentos, cujos nomes são: querer, considerar, vigiar, consultar, formar opiniões justas e erradas, ter alegria, pena, confiança, medo, ódio, amor, junto com todos aqueles movimentos primitivos que a estes estão unidos. Sendo uma deusa sempre tem a Nous, um deus, por aliado, e ordena todas as coisas correta e felizmente; mas quando se une a Anoia (não a Nous), trabalha em todas as coisas em sentido oposto."

Nesta linguagem, assim como nos textos buddhistas, considera-se o negativo, como existência essencial. O aniquilamento está explicado de modo semelhante. O estado positivo é o ser essencial, mas não a manifestação como tal. Em linguagem buddhista, quando o espírito entra no Nirvana, perde a existência objetiva, mas conserva o ser subjetivo. Para as inteligências objetivas isto é converter-se em absolutamente nada, e para as subjetivas em Nenhuma Coisa, isto é, em nada que possa ser manifestado aos sentidos. Em conseqüência, seu Nirvana significa a certeza da imortalidade individual em espírito, não em alma, a qual, embora sendo "a mais antiga de todas as coisas" sem dúvida, é em união com todos os demais deuses, uma emanação finita, em formas e individualidade, senão em substância.

 

P: Ainda não compreendi bem a idéia e agradeceria se a desenvolvesse por meio de alguns exemplos.

T: Não resta dúvida de que é muito difícil de compreender, principalmente para quem foi educado nas idéias ortodoxas usuais da Igreja cristã. Devo acrescentar que, a não ser estudando perfeitamente as funções separadas assinaladas a todos os "princípios" humanos, e o estado de todos eles depois da morte, dificilmente pode ser compreendida nossa filosofia oriental.



[1] Veja  mais  adiante  "Da  recompensa e castigo do  Ego".

[2] Zohar, vol. II, pág. 96.

[3] Mishna, Aboth, vol.  IV,pág.19.

 

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