Blavatsky e sua obra

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Uma requintada aptidão literária foi a principal herança de Helena Petrovna Fadeef von Blavatsky. Nascida em 1831, madame Blavatsky (como é hoje mundialmente conhecida) pertencia à mais nobre linhagem da aristocracia russa. Isso não impediria que ela abandonasse o conforto dos palácios para conhecer de perto a aventura espiritual e material dos homens.

Depois de receber uma aprimorada educação musical e lingüística, ela casou-se com o general Nicéforo von Blavatsky, governador da Província russa Erivan, muito mais velho do que ela. O casamento duraria apenas alguns meses.

Após a separação, madame Blavatsky foi morar em Constantinopla. A partir desse ponto, ela pôde visitar quase todos os países da Ásia Menor, estudando seus costumes e suas práticas religiosas.

Em 1851, completamente sem dinheiro, ela foi fixar-se em Londres, passando a lecionar piano para sobreviver. Com apenas vinte anos de idade, ela já era completamente emancipada da família e não tinha condições de regressar à pátria.

Na capital inglesa ela freqüentou sessões espíritas, onde conheceu o célebre médium Douglas Home e fez parte de alguns círculos revolucionários. A influência desses contatos se manifestaria de maneira acentuada, em 1856, quando se filiou à associação carbonária Jovem Europa, a convite de Mazzini. Mais tarde, madame Blavatsky lutaria ao lado de Garibaldi, em Viterbo, e depois em Mentana, onde recebeu tantos ferimentos que foi dada como morta no campo de batalha. Porém, em 1870, Blavatsky aparece no Cairo, onde funda uma sociedade espírita cuja propaganda era feita por um órgão denominado Revista Espiritualista do Cairo. Pouco tempo depois, desiludida com as fraudes observadas, ela abandona a prática do Espiritismo.

Em meados de 1873, madame Blavatsky resolveu partir para os Estados Unidos. Essa viagem seria decisiva para sua atividade futura pois, em Nova York, ela conheceria o coronel Henry Steele Olcott, recém-chegado da guerra civil e que dividia seu tempo entre as lojas maçônicas e os centros espíritas.

Essa amizade representou a consolidação definitiva dos seus planos, no terreno espiritualista. Assim, um ano depois, em fins de 1875, eles fundariam a Sociedade Teosófica. Essa missão fora sugerida a Blavatsky, aos vinte anos de idade, quando ainda residia na Inglaterra. Conta-se ainda que nessa época ela conheceu um dos membros da Embaixada do Nepal, que lhe surgira várias vezes, em suas primeiras visões, quando era criança. Não resta dúvida que Blavatsky era dotada de faculdades parapsicológicas, que se manifestariam durante toda sua vida até a hora da morte. Esse embaixador devia ser — provavelmente — um daqueles iluminados da Ásia Central, descritos por Van Der Neilen em seu livro Nos Templos do Himalaia. São seres devotados à causa da espiritualidade e capazes de inspirar os caminhos da metafísica oriental. Esses iluminados despertam faculdades latentes na alma, revelando ao discípulo ou eleito de sua proteção, a mais alta sabedoria.

Esse embaixador deve ter sido o guia espiritual de Blavatsky quando ela publicou, em 1877, sua obra ísis sem Véu, em quatro volumes, que revolucionaria alguns setores das culturas americana e européia, demonstrando categoricamente os postulados ocultistas ao mesmo tempo em que criticava os conceitos materialistas e atacava o imperialismo jesuítico. A certeza de um "guia espiritual" nos vem do fato de Blavatsky, na referida obra, ter feito citações de 1400 livros que lhe eram desconhecidos e até ignorados. Esse fato foi cautelosamente investigado pelo crítico inglês William Emmett Coleman, seguindo as informações de um escritor familiarizado nesse campo de investigações fenomênicas (Jacques Bergier - Os Livros Malditos, Ed. HEMUS, 1972).

Madame Blavatsky era uma personalidade autodeterminante, combativa no ideal e humilde junto aos mestres. Ela fazia jus ao mérito de estranhas e belas comunicações com um mundo bem diverso desse que se acha ligado (principalmente em sua época, filosoficamente dominada pelo positivismo) aos cinco sentidos humanos. Evidentemente ela acabaria provocando contra si o ódio clerical — católico e anglicano —, que naquela época andava de mãos dadas com a política européia, eminentemente colonizadora. Tudo isso era fortalecido pela intransigência da filosofia materialista e pelo orgulho de um cientificismo que se julgava insuperável. Foi assim que o século 19 desembocou no século 20 com solene mediocridade: no ano de 1901 o Bureau Francês de Invenções fechava suas portas porque "tudo já estava descoberto..."

Blavatsky sofreu campanha acérrima dos inimigos da sua doutrina: difamações violentas, ataques a mão armada, e até um sinistro provocado a bordo do navio em que ela viajava para o Oriente. Sabe-se que no ano de 1870, ao atravessar o canal de Suez, explodiu a embarcação "onde a maior parte dos viajantes foi reduzida a poeira tão fina que nem se achou mais vestígio de seus cadáveres", J. Bergier, livro citado. Desse ataque, madame Blavatsky escapou miraculosamente.

Várias frentes decidiram lutar contra a fundadora da Sociedade Teosófica: ora o governo inglês, e conseqüentemente a polícia do vice-rei da índia, ora os missionários protestantes; sem falar nos jesuítas. A Sociedade de Pesquisas Psíquicas, sediada em Londres, tinha na pessoa de Hodgson, vigoroso panfletista, um caluniador de Blavatsky; porém, E.S. Dutt provou a integridade moral da acusada, bem como a honestidade de seus propósitos. Dutt provou ainda a existência de uma conspiração, muito bem organizada, para destruí-la. Logo no início do nosso século, surgem ainda duas obras contrárias ao valor da fundadora da Sociedade Teosófica: José Vasconcelos com Estudios Indostánicos e René Guénon com Lê Théosophisme - - Histoire d'une Pseudo-religion; respectivamente de 1923 e 1929.

Essas acusações, porém, iriam se arrebentar como o vidro de uma garrafa contra o rochedo impassível da evidência. Basta ler as respostas de G. R. Mead, Concerning H.P.B.; J. Ranson, Madame Blavatsky Occultist; F. Arundale, My Guest H.P.B.; W. Kingsland, La Verdadera H. P. Blavatsky; A. L. Cleather, H.P. Blavatsky, as I Knew Her e, principalmente,  a  documentada e  volumosa  obra de Mario Roso de Luna,   Una Mártir dei Siglo XIX, Helena Petrovna Blavatsky. São estudos criteriosos, desapaixonados, que  convergem unanimemente à consagração de uma consciente missionária da Teosofia, da qual ela foi pioneira no Ocidente. São testemunhos de vários matizes, que desmentem as acusações e restabelecem a verdade. As principais obras de madame Blavatsky são Isis sem Véu, 1877; A Doutrina Secreta, síntese de filosofia,  ciência e religião, em seis volumes, 1888; The Theosophical Glossary, 1890; A  Voz do Silêncio, 1889; Narrações Ocultistas,  1890; Pelas Grutas e Selvas do Hindustão,  1890; e A Chave da Teosofia, em 1891, ano da sua morte.

Assim, o livro que estamos apresentando ao público é a última obra da grande mestra. E também o mais acessível. Parece que no fim da vida ela sentiu necessidade de popularizar seus ensinamentos. Por essa razão, A Chave da Teosofia, obra eminentemente didática, se apresenta como um roteiro capaz de orientar todos os que desejam inaugurar seus estudos, ingressando no saguão desse vasto edifício cultural.

A Chave da Teosofia não é a síntese dos diversos livros de Blavatsky. Pode, quando muito, ser encarado como operação inicial de um complicado processo matemático. É sempre bom esclarecer que nossa mentalidade ocidental tem sido suprida por subsídios culturais, muitas vezes contrários à estrutura metafísica. Ainda perduram, em setores de influência da didática oficial -- ou da filosofia aplicada —, o sensualismo de Condillac e a "tábua rasa" de Locke como resíduos do aforismo caduco: "Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu". Admite-se a origem das idéias na experiência externa (sensação) e na interna (reflexão).

Situada em campo contrário, A Chave da Teosofia tem como núcleo a metafísica. A definição adotada é a de Ranzoli, em lugar da de Andrônico de Rodes, por indicar aquela parte excelsa do saber humano que trata da essência última das coisas, enquanto procura explicar o mundo e a existência, valendo-se do método apriorístico, isto é, partindo do ser em si, do ente necessário e perfeito. Pode ser entendida como o conhecimento que se obtém com a intuição direta das coisas.

A esse propósito, citamos o espiritualista Huberto Rohden, para esclarecer e avaliar o conceito:

"Para que o homem seja capaz de ver e conscientizar a realidade metafísica em todas as factividades físicas, ele deve isolar-se por longo tempo na pura metafísica, até que o último resquício do físico desapareça no horizonte de seu consciente, e ele permaneça, sozinho e desnudo, no seu cosmo-consciente, sentindo em si o grande uno, longe de todo verso. Mas é precisamente aqui que está o tremendo problema para quase todos os homens do Ocidente, que, em geral, têm 100% de consciência física e 0% de consciência metafísica. Esse peso-morto tem milhares de anos na raça humana e alguns decênios em cada indivíduo. Neutralizar esse peso-morto é um problema de árdua solução" (in Sabedoria, n.° 81, pág. 299).

A Chave da Teosofia é, portanto, uma tentativa de tornar a metafísica acessível ao postulante habituado a tatear outros caminhos. Entretanto, mesmo vencendo as primeiras etapas de sua tarefa, não convém lançar-se imediatamente nos seis volumes da Doutrina Secreta. Isto porque essa gigantesca obra não foi elaborada de acordo com o método expositivo adequado à nossa mentalidade ocidental. Pelo contrário, fruto de uma intuição direta, esse livro parece mais um jogo intelectual de proposições abstratas e concretas, ora conseqüentes, ora autônomas, que rompem o equilíbrio e o arranjo da pesquisa. Quanto a isso, Mario Roso de Luna — o maior defensor de Blavatsky, seu discípulo mais fiel e criterioso biógrafo — fez a seguinte apreciação:

"Esse edifício ciclópico do saber arcaico é um monumento prodigioso, mas ao mesmo tempo desordenado e confuso. Não vamos entrar na controvérsia de que assim tenha sido feito deliberadamente, como parece deduzir-se até das frases de certos tópicos, e com o objetivo de estimular o estudante sincero, afastando, outrossim, os leitores possuídos de mera frivolidade científica; mas a verdade é que a tarefa de tais estudantes, diante desses complicados volumes, é seguida não raro de desalento só comparável ao do bom católico simplesmente emotivo manuseando a Bíblia''.

Por razões evidentes, a Sociedade Teosófica da França achou oportuna a publicação de um volume que fosse o meio-termo entre os rudimentos de A Chave da Teosofia e a altitude de A Doutrina Secreta. Assim, em 1923, surgiu o Breviário da Doutrina Secreta, cujo prefácio advertia: "Aí se encontra, de alguma maneira, a essência da Doutrina Arcaica, obtida, não pelo exame do texto, mas por eliminação de parágrafos considerados menos importantes".

A Chave da Teosofia não oferece prêmios à curiosidade, porque esta é a tangente que resvala na sabedoria; também não ilumina a mente, porque não é um sol de conhecimento; mas dá ao estudioso a oportunidade de empolgar-se menos com a tecnocracia dominante, e orientar-se a si mesmo no melhor sentido de sua humanização. A Chave da Teosofia não é uma escola que leve o homem ao caminho da liberação, pois esta só é alcançada de dentro para fora de nós mesmos. Preferimos ver nela uma convocação de fora para dentro, para despertar em nosso coração o primado do espírito. A Chave da Teosofia poderá ser um passo — e já teria cumprido sua missão — que nos aproxime das portas da eternidade.

 

Edmundo Cardillo

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