O Cristo Histórico

Submitted by Estante Virtual on Sat, 12/17/2011 - 19:31

Já falamos, no capítulo I, sobre as identidades que existem em todas as religiões do mundo, e vimos que de um estudo destas identidades de crenças, simbolismos, ritos, cerimônias, histórias e festivais comemorativos nasceu uma escola moderna que relaciona tudo isto a uma fonte comum na ignorância humana, e em uma explicação primitiva dos fenômenos naturais. A partir destas identidades foram forjadas armas para atacar cada religião por sua vez, e os mais efetivos ataques ao Cristianismo e à existência histórica de seu Fundador obtiveram suas armas naquela fonte. Passando agora ao estudo da vida de Cristo, dos ritos do Cristianismo, seus sacramentos, suas doutrinas, seria fatal ignorarmos os fatos reunidos pela Mitologia Comparada. Entendidos corretamente, eles podem ser úteis, em vez de daninhos. Vimos que os Apóstolos e seus sucessores trataram mui livremente o Antigo Testamento como tendo um sentido alegórico e místico muito mais importante do que o histórico, embora de modo algum negando-o, e não tiveram escrúpulos em instruir o crente culto de que alguns relatos que eram aparentemente históricos fossem em verdade puramente alegóricos. Ali, talvez, seja mais necessário entender isto do que ao estudarmos a história de Jesus, cognominado de Cristo, pois quando não desenredamos as linhas emaranhadas, e vemos onde os símbolos foram tomados como eventos, alegorias como histórias, perdemos a maior parte da instrutividade da narrativa e muito de sua finíssima beleza.

Não podemos insistir demais no fato de que o Cristianismo ganha, e não perde, quando o conhecimento é acrescentado à fé e à virtude, de acordo com a injunção apostólica (II Pedro, I, 5). Os homens temem que o Cristianismo seja enfraquecido quando a razão o analisa, e que seja “perigoso” admitir que eventos imaginados serem históricos têm o significado mais profundo no terreno mítico ou místico. Ao contrário, ele é fortalecido, e o estudante descobre, com alegria, que a pérola de grande valor brilha com um lustro mais puro e claro quando a camada de ignorância é removida e as suas muitas cores são vistas.

Hoje em dia há duas escolas de pensamento, acerbamente opostas entre si, disputando em torno da história do grande Instrutor Hebreu. De acordo com uma escola não há nada exceto mitos e lendas nos registros de Sua vida – mitos e lendas que foram dados como explicação de certos fenômenos naturais, resquícios de um modo figurativo de se ensinar os fatos da natureza, de imprimir nas mentes dos incultos certas classificações abrangentes dos eventos naturais que são importantes em si, e que se prestavam á instrução moral. Os que ratificam esta visão formam uma escola bem definida à qual pertencem muitos homens de alta educação e poderosa inteligência, e em torno deles se reúnem multidões de menos instruídos, que enfatizam com veemência crua os elementos mais destrutivos dos seus pronunciamentos. A esta escola se opõe a dos crentes no Cristianismo ortodoxo, que declaram que toda a narrativa de Jesus é histórica, não adulterada pela lenda ou pelo mito.

Eles sustentam que esta narrativa não é nada mais do que a história da vida de um homem nascido há dezenove séculos atrás na Palestina, que passou por todas as experiências registradas nos Evangelhos, e eles negam que a narrativa tenha qualquer significação além daquela de uma vida divina e humana. Estas duas escolas permanecem em antagonismo direto, uma asseverando que tudo é lenda, a outra declarando que tudo é história. Entre elas existem muitas variantes de opinião geralmente rotuladas de “livre pensamento”, que consideram a narrativa da vida como parcialmente legendária e parcialmente histórica, mas não oferecem nenhum método definido e racional de interpretação, e nenhuma explicação adequada para o complexo todo. E também encontramos, dentro do âmbito da Igreja Cristã, um número grande e sempre crescente de Cristãos fiéis e devotos de inteligência refinada, homens e mulheres que são aplicados em sua fé e religiosos em suas aspirações, mas que vêem na narrativa Evangélica mais do que a história de um simples Homem Divino. Eles alegam – defendendo sua posição contra as Escrituras reveladas – que a história de Cristo tem um significado mais profundo e importante do que aquele que jaz na superfície; conquanto sustentem o caráter histórico de Jesus, ao mesmo tempo declaram que O CRISTO é mais que o homem Jesus, e que tem um significado místico. Em apoio a esta posição eles indicam certas frases que são usadas por São Paulo:

“Meus filhos, de quem sofro as dores do parto até que Cristo esteja formado em vós” (Gálatas, IV, 19); aqui São Paulo obviamente não pode se referir a um Jesus histórico, mas a alguma projeção [forth-putting, no original – NT] da alma humana que para ele é a formação de Cristo no seu interior. Novamente o mesmo instrutor declara que embora ele tenha conhecido Cristo na carne, dali em diante ele já não o conheceria assim (II Coríntios, V, 16); obviamente implicando que embora conhecendo o Cristo de carne – Jesus – havia uma concepção superior à qual chegara que lançava o Cristo histórico na sombra.

Esta é a visão que muitos estão procurando hoje em dia, e – confrontados com os fatos da Religião Comparada, perplexos pelas contradições dos Evangelhos, confusos pelos problemas que eles não podem resolver enquanto ficarem presos ao mero significado superficial de sua escritura – então gritam desesperados que a letra mata mas o espírito vivifica, e procuram descobrir algum significado mais profundo e vasto em uma história que é tão velha quanto as religiões do mundo, e tem sempre servido como o verdadeiro cerne e vida para cada religião na qual reapareceu. Estes infatigáveis pensadores, demasiado desconectados e indefinidos para serem considerados uma escola, parecem estender uma mão, de um lado, para aqueles que imaginam tudo ser uma lenda, pedindo-lhes para aceitarem uma base histórica; de outro lado, dizem a seus irmãos Cristãos que existe um perigo crescente em se aferrar a um significado literal e exclusivo, o qual já não pode ser defeso diante do conhecimento crescente desta época, e pondo a perder inteiramente o significado espiritual. Há um perigo de perder-se “a história do Cristo” junto com aquele pensamento sobre o Cristo que tem sido o sustento e a inspiração de milhões de vidas nobres no Oriente e no Ocidente, embora o Cristo seja chamado por outros nomes e adorado sob outras formas; um perigo de que a pérola de grande valor se perca para nós, e o homem seja completamente empobrecido para sempre.

O que é preciso, a fim de que este perigo possa ser evitado, é desemaranhar as diferentes linhas na história do Cristo, e colocá-las lado a lado – a linha da história, a linha da lenda, a linha do misticismo. Elas se misturaram numa só linha, para grande prejuízo daquele que pensa, e desemaranhando-as veremos que a história se torna mais, e não menos, valiosa quando se acrescenta a ela o conhecimento, e que aqui, como em tudo que pertence basicamente à verdade, quanto mais brilhante é luz lançada, maior é a beleza que se desvela.

Estudaremos primeiro o Cristo histórico; depois o Cristo mítico, e enfim o Cristo místico. E veremos que elementos retirados de todos eles constituem o Jesus Cristo das Igrejas. Todos eles entram na composição da Figura patética e grandiosa que domina os pensamentos e as emoções da Cristandade, o Homem das Dores, o Salvador, o Amante e o Senhor dos Homens.

 

O Cristo Histórico ou Jesus, o Curador e Instrutor

A linha da história de vida de Jesus é uma que pode ser separada sem grande dificuldade das outras com que se mesclou. Podemos aqui muito bem auxiliar nosso estudo com referência àqueles registros do passado que peritos podem confirmar por si mesmos, e a partir dos quais certos detalhes a respeito do Instrutor Hebreu foram transmitidos ao mundo por H.P.Blavatsky e por outros peritos em investigação oculta. Mas nas mentes de muitos pode surgir um óbice quando essa palavra “perito” é aplicada em conexão ao ocultismo.

Embora signifique simplesmente uma pessoa que por estudo especial, por treinamento especial, acumulou um tipo especial de conhecimento, e desenvolveu poderes que o capacitam a dar uma opinião fundamentada em seu conhecimento pessoal a respeito do assunto com que está lidando. Assim como falamos de Huxley como um perito em Biologia, assim como falamos de Senior Wrangler como um perito em Matemática, ou de Lyell como um perito em geologia, então podemos muito bem chamar de perito em ocultismo um homem que primeiro dominou intelectualmente certas teorias fundamentais sobre a constituição do homem e do universo, e segundo desenvolveu em si mesmo os poderes que existem latentes em todos – e são passíveis de serem desenvolvidos por aqueles que se aplicam aos estudos apropriados – capacidades que o habilitam a examinar por si mesmo os mais obscuros processos da natureza. Assim como um homem pode nascer com uma faculdade matemática, e treinando esta faculdade ano após ano ele pode aumentar imensamente sua capacidade matemática, do mesmo modo um homem pode nascer com certas faculdades em si, faculdades pertencentes à Alma, que podem ser desenvolvidas pelo treino e pela disciplina. Quando, tendo desenvolvido estas faculdades, ele as aplica ao estudo do mundo invisível, um tal homem se trona um perito na Ciência Oculta, e um tal homem pode à sua vontade confirmar os registros a que me referi. Esta confirmação está tão fora do alcance da pessoa comum quanto um livro matemático escrito nos símbolos da matemática avançada está fora do alcance daqueles destreinados na ciência matemática. Não há nada de exclusivo no conhecimento a não ser até onde cada ciência é exclusiva; aqueles que nascem com uma faculdade, e a adestram, podem dominar sua respectiva ciência, enquanto que aqueles que iniciam a vida sem qualquer faculdade, ou os que não a desenvolvem se a possuem, devem se contentar em permanecer na ignorância. Estas são as regras por toda parte a respeito da obtenção de conhecimento, tanto no Ocultismo como em qualquer ciência.

Os registros ocultos em parte endossam a história contada nos Evangelhos, e em parte a refutam; eles nos apresentam a vida, e assim nos capacitam a separá-la dos mitos que se lhe estão entretecidos.

A criança cujo nome foi traduzido como Jesus nasceu na Palestina em 105 aC, durante o consulado de Publius Rutilius Rufus e Gnaeus Mallius Maximus.

Seus pais eram de boa linhagem, mas pobres, e ele foi educado no conhecimento das escrituras Hebraicas. Sua fervorosa devoção e uma gravidade precoce levaram seus pais a dedicá-lo à vida religiosa e ascética, e logo após uma visita a Jerusalém, na qual a extraordinária inteligência e avidez por conhecimento do jovem foram demonstrados em sua busca pelos doutores do Templo, ele foi enviado para ser treinado em uma comunidade Essênia no sul do deserto da Judéia. Chegando aos dezenove anos, foi para o mosteiro Essênio perto do Monte Serbal, um mosteiro que era muito visitado pelos eruditos que viajavam da Pérsia e Índia para o Egito, e onde havia sido reunida uma magnífica biblioteca de obras ocultas – muitas delas indianas da região Trans-himalaica. Desta séde de conhecimento místico ele passou mais tarde para o Egito. Ele foi completamente instruído nos ensinamentos secretos que eram a verdadeira fonte da vida entre os Essênios, e foi iniciado no Egito como um discípulo daquela Loja sublime de onde saíram todos os Fundadores de todas as grandes religiões. Pois o Egito havia permanecido como um dos centros mundiais dos verdadeiros Mistérios, dos quais todos os Mistérios semipúblicos são o pálido e distante reflexo. Os Mistérios mencionados na história como Egípcios eram as sombras das verdadeiras coisas “no Monte”, e lá o jovem hebreu recebeu a consagração solene que o preparou para o Real Sacerdócio que mais tarde ele obteria. Tão sobre-humanamente puro e tão pleno de devoção era ele, que em sua graciosa maturidade pairava conspicuamente acima dos severos e algo fanáticos ascetas entre os quais havia sido treinado, espalhando nos austeros Judeus ao seu redor a fragrância de uma sabedoria gentil e terna, como uma rosa estranhamente plantada em um deserto espalharia seu aroma na aridez à volta. A bela e majestosa graça de sua branca pureza permanecia em seu redor como um halo feito de radioso luar, e suas palavras, embora escassas, eram sempre doces e amáveis, trazendo mesmo o mais rude para uma temporária gentileza, e o mais rígido para uma efêmera suavidade. Assim ele viveu por vinte e nove anos de vida mortal, crescendo de graça em graça.

Esta pureza e devoção sobre-humanas aprontaram o homem Jesus, o discípulo, para tornar-se o templo de um poder superior, de uma poderosa Presença interna. O tempo havia chegado para uma daquelas manifestações divinas que de era em era ocorrem para o auxílio da humanidade, quando um novo impulso é necessário para estimular a evolução espiritual da humanidade, quando uma nova civilização está prestes a despontar. O mundo do Ocidente estava então no seio do tempo, pronto para nascer, e a sub-raça Teutônica devia receber o cetro do império das mãos fraquejantes de Roma. Antes que ela iniciasse sua jornada deveria aparecer um Salvador do Mundo, para permanecer abençoando ao lado do berço do Hércules infante.

Estava para encarnar sobre a Terra um poderoso “Filho de Deus”, um Instrutor supremo, “cheio de graça e verdade” (João, I, 14), um Ser em quem a Sabedoria Divina residia em plena medida, que era verdadeiramente “o Verbo” encarnado, Luz e Vida em abundante riqueza, uma verdadeira Fonte das Águas da Vida. Senhor de Compaixão e Sabedoria – tal era Seu nome – e de Sua morada nos Lugares Secretos veio Ele para o mundo dos homens.

Para Ele era necessário um tabernáculo terreno, uma forma humana, o corpo de um homem, e quem mais pronto para emprestar seu corpo em alegre e anelante serviço Àquele diante de quem os Anjos e homens se curvam na mais humilde reverência, como este Hebreu dos hebreus, este o mais puro e mais nobre dentre os “Perfeitos”, cujo corpo imaculado e mente impecável era o melhor que a humanidade poderia oferecer? O homem Jesus entregou-se em um sacrifício voluntário, “ofereceu-se sem mácula” ao Senhor do Amor, que tomou aquela forma pura como tabernáculo, e lá residiu por três anos de vida mortal.

Esta época é assinalada nas tradições reunidas nos Evangelhos como a do Batismo de Jesus, quando o Espírito foi visto “descendo dos céus como uma pomba, e ficou sobre Ele” (Ibid., I, 32), e uma voz celestial proclamou-O como Seu Filho muito amado, a quem os homens deveriam ouvir. Em verdade Ele era o Filho bem-amado de quem o Pai se comprazia (Mateus, III, 17), e daquele tempo em diante “Jesus começou a pregar” (Ibid., IV, 17), e este foi o mistério assombroso, “Deus manifesto na carne” (I Timóteo, III, 16) – não só n’Ele estava Deus, pois: “Não está escrito em vossa lei, ‘Eu disse: Vós sois Deuses’? Se a Lei chama Deuses a quem a palavra de Deus foi dirigida, e a Escritura não pode ser ignorada, dizei d’Ele, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, ‘Tu blasfemas’, porque Eu disse ‘Eu sou o Filho de Deus’ ?” (João, X, 34-36). Verdadeiramente todos os homens são Deuses, no que tange ao Espírito neles, mas não em todos a Divindade está manifesta como n’Aquele bem-amado Filho do Altíssimo.

A esta Presença manifesta o nome “o Cristo” pode ser dado corretamente, e foi Ele quem viveu e se moveu sob a forma do homem Jesus através das colinas e planícies da Palestina, ensinando, curando doenças, e reunindo em Seu redor como discípulos umas poucas almas dentre as mais avançadas. O raro charme de Seu régio amor, derramando-se d’Ele como raios de um sol, atraiu para em torno a Si os sofredores, os fatigados e os oprimidos, e a magia sutilmente terna de Sua gentil sabedoria, purificava, enobrecia e aliviava as vidas que entravam em contato com a Sua. Com parábolas e imagens luminosas Ele ensinou as multidões incultas que se aglomeravam à Sua volta, e usando os poderes do Espírito livre, curava muitas doenças com a palavra ou o toque, fortalecendo as energias magnéticas que eram de Seu corpo puro com a força irresistível de Sua vida interior. Rejeitado pelos Seus irmãos Essênios onde primeiramente trabalhou – cujos argumentos contra Sua vida proposta de trabalho amoroso são resumidas na história da tentação – porque ele levava às multidões a sabedoria espiritual que eles consideravam o tesouro de que mais se orgulhavam, e o mais secreto, e porque Seu amor todo-abrangente atraía para seu círculo o pária e o degradado – sempre amante no mais baixo como no mais alto, o Eu Divino – Ele viu se juntando em Seu redor muito rapidamente as negras nuvens do ódio e da suspeita. Os doutores e regentes da nação logo passaram a encará-Lo com inveja e raiva; Sua espiritualidade era uma censura constante para seu materialismo, Seu poder, uma constante, embora silenciosa, exposição de sua fraqueza. Mal três anos haviam se passado desde Seu batismo quando a tempestade que se formava irrompeu, e o corpo humano de Jesus pagou o preço por abrigar a gloriosa Presença de um Instrutor mais que humano.

O pequeno grupo de discípulos eleitos que Ele havia escolhido como repositórios de Seus ensinamentos foi assim privado da presença física de Seu Mestre antes que houvessem assimilado Suas instruções, mas eram almas de um tipo elevado e avançado, prontas para aprender a sabedoria, a aptas para transmiti-la para homens menos evoluídos. O mais receptivo de todos era o “discípulo que Jesus amava”, jovem, ávido e ardente, profundamente devoto de Seu Mestre, e compartilhando de Seu espírito de amor todo-abrangente. Ele representou, através do século que se seguiu à partida física do Cristo, o espírito da devoção mística que buscava o êxtase, a visão e a união com o Divino, enquanto que o grande Apóstolo tardio, São Paulo, representou o lado sabedoria dos Mistérios.

O Mestre não esqueceu Sua promessa de vir a eles depois que o mundo O tivesse perdido de vista (João, XIV, 18-19), e por cerca de cinqüenta anos Ele os visitou em Seu corpo espiritual sutil, continuando os ensinamentos que havia iniciado enquanto estava com eles, e treinando-os num conhecimento das verdades ocultas. Eles viviam juntos, em sua maior parte, em um local retirado nos limites da Judéia, não atraindo nenhuma atenção entre as muitas comunidades aparentemente similares da época, estudando as profundas verdades que Ele ensinava e adquirindo “os dons do Espírito”.

Estas instruções internas, começadas durante Sua vida física entre eles e desenvolvidas depois de Ele deixar o corpo, formaram a base dos “Mistérios de Jesus”, que vimos na primitiva História da Igreja, e deram a vida interna que foi o núcleo em torno do qual se juntaram os materiais heterogêneos que formaram o Cristianismo eclesiástico.

No admirável fragmento chamado Pistis Sophia, temos um documento do maior interesse a respeito dos ensinamentos ocultos, escrito pelo famoso Valentino. Nele é dito que durante os onze anos imediatamente depois de Sua morte Jesus instruiu Seus discípulos até “a região dos primeiros estatutos somente, e até as regiões do primeiro mistério, o mistério dentro do véu” (Valentinus, Pistis Sophia, livro I, 1; trad., de G.R.S.Mead,). Eles não haviam aprendido até a distribuição das ordens angélicas, das quais fala Inácio. Então Jesus, estando “no Monte” com Seus discípulos, e tendo recebido Sua Vestimenta mística, o conhecimento de todas as regiões e das Palavras de Poder que as franqueiam, ensinou mais Seus discípulos, prometendo: “Eu vos aperfeiçoarei em toda perfeição, dos mistérios do interior até os mistérios do exterior: Eu vos encherei do Espírito, para que sejais chamados de espirituais, perfeitos em todas as perfeições” (Ibid., 60). E Ele os ensinou sobre Sophia, a Sabedoria, e sua queda na matéria em sua tentativa de se elevar até o Altíssimo, e de seus gritos para a Luz na qual ela havia confiado, e sobre o envio de Jesus para redimi-la do caos, e sobre sua coroação com Sua luz, e sua libertação da escravidão. E Ele lhes falou mais sobre o Mistério mais excelso, o inefável, o mais simples e claro de todos, a ser conhecido somente pelos que renunciaram completamente ao mundo (Ibid., livro II, 218), através de cujo conhecimento os homens se tornam Cristos, pois “tais homens são eu mesmo, e eu sou estes homens”, pois Cristo é aquele Mistério mais excelso (Ibid., 230). Sabendo isto, os homens são “transformados em pura luz e são trazidos para dentro da luz” (Ibid., 357). E ele executou para eles a grande cerimônia da Iniciação, o batismo “que conduz à região da verdade e à região da luz”, e ordenou-lhes celebrá-la para outros que fossem dignos: “Mas ocultai este mistério, não o deis a todos os homens, mas só àqueles que farão todas as coisas que vos disse em meus mandamentos” (Ibid., 377).

Desde então, estando plenamente instruídos, os apóstolos saíram a pregar, sempre auxiliados por seu Mestre.

Além disso, estes mesmos discípulos e seus primeiros colegas escreveram de memória todos os ditos públicos e parábolas do Mestre que haviam ouvido, e reuniram com grande zelo quaisquer relatos que puderam encontrar, registrando também estes, e divulgando-os todos entre aqueles que gradualmente se associavam á sua pequena comunidade. Foram feitas várias coleções, qualquer membro escrevendo o que ele mesmo lembrava, e adicionando seleções de relatos alheios. Os ensinamentos internos, dados por Cristo aos Seus eleitos, não forma registrados, mas eram ensinados oralmente àqueles julgados dignos de os receber, para estudantes que formavam pequenas comunidades para levar uma vida retirada, e que ficavam em contato com o corpo central.

O Cristo histórico é, pois, um Ser glorioso pertencente à grande hierarquia espiritual que guia a evolução espiritual da humanidade, e que usou por cerca de três anos o corpo humano do discípulo Jesus; que passou o último destes três anos ensinando publicamente através da Judéia e da Samaria; que foi um curador de doenças e operou outras obras ocultas admiráveis; que reuniu em torno de Si um pequeno grupo de discípulos a quem instruiu nas verdades mais profundas da vida espiritual; que atraiu homens para Si pelo amor singular, pela ternura e pela rica sabedoria que transpiravam de Sua Pessoa; e que finalmente foi votado à morte por blasfêmia, por ensinar a Divindade inerente de Si mesmo e de todos os homens Ele veio para dar um novo impulso à vida espiritual do mundo; para restabelecer os ensinamentos internos referentes á vida espiritual; para indicar novamente a antiga senda estreita; para proclamar a existência do “Reino dos Céus”, da Iniciação que admite àquele conhecimento de Deus que é a vida eterna; e para admitir uns poucos a este Reino que seriam capazes de ensiná-lo a outros. Em torno desta Figura gloriosa se reuniram os mitos que O ligaram à longa linhagem de Seus predecessores, os mitos que em alegorias contam a história de todas as vidas que à d’Ele se assemelham, pois elas simbolizam a obra do Logos no Cosmos e a mais elevada evolução da alma humana individual.

Mas não devemos supor que a obra do Cristo em prol de Seus seguidores encerrou depois que Ele estabeleceu os Mistérios, ou ficou confinada a raras aparições ali. Aquele poderoso Ser que utilizou o corpo de Jesus como veículo, e cujo cuidado vigilante se estende sobre toda a evolução espiritual da quinta raça da humanidade, depositou nas fortes mãos do santo discípulo que lhe rendera o corpo o cuidado pela Igreja nascente. Aperfeiçoando sua evolução humana, Jesus se tornou um dos Mestres de Sabedoria, e tomou a Cristandade sob Sua especial responsabilidade, sempre procurando guiá-la nas linhas certas, protegê-la, guardá-la e nutri-la. Ele era o Hierofante nos Mistérios Cristãos, o Instrutor direto dos Iniciados. Sua foi a inspiração que manteve acesa a Gnose na Igreja, até que a crescente massa de ignorância se tornou tão grande que mesmo Seu alento não poderia alimentar a chama suficientemente para que evitar sua extinção. Seu é o paciente labor com que alma após alma fortalecida persevera através das trevas, e acalenta dentro de si mesma a centelha do anelo místico, a sede de encontra o deus Oculto. Seu é o constante derramar de verdade em cada cérebro pronto a recebê-la, para que mão após mão estendida através dos séculos passe a tocha do conhecimento, que assim jamais se extinguiu. Sua era a Forma que ficava ao lado de cada patíbulo e em meio às chamas da fogueira, consolando Seus confessores e Seus mártires, amenizando as dores de suas penas, e enchendo seus corações com Sua paz. Seu foi o impulso que falou através do trovão de Savonarola, que guiou a calma sabedoria de Erasmo, que inspirou a profunda ética de intoxicado por deus Spinoza. Sua foi a energia que impeliu Roger Bacon, Galileu e Paracelso em suas pesquisas da natureza. Sua foi a beleza que deslumbrou Fra Angelico e Raphael e Leonardo da Vinci, que inspirou o gênio de Michelangelo, que brilhou diante dos olhos de Murillo, e que deu o poder que erigiu as maravilhas do mundo, o Duomo de Milão, San Marco em Veneza, a Catedral de Florença. Sua foi a melodia que se ouve nas missas de Mozart, nas sonatas de Beethoven, nos oratórios de Haendel, nas fugas de Bach, no austero esplendor de Brahms. Sua é a presença que confortou os místicos solitários, os ocultistas perseguidos, os pacientes buscadores da verdade. Pela persuasão e pela ameaça, pela eloqüência de um São Francisco e nos chistes de um Voltaire, pela doce submissão de um Thomas a Kempis, e na robusta virilidade de um Lutero, Ele procurou instruir e despertar, ganhar para a santidade ou atiçar para longe do mal. Através dos longos séculos Ele tem se esforçado e trabalhado, e, mesmo com todo o enorme peso do Cristianismo para levar, jamais deixou descuidado ou desconsolado um só coração humano que tenha lhe clamado por ajuda. E agora Ele está tentando devolver em benefício da Cristandade uma parte da copiosa torrente de Sabedoria derramada para a renovação do mundo, e está buscando pelas Igrejas alguns que tenham ouvidos para ouvir a Sabedoria, e os que respondam ao Seu apelo por mensageiros que a levem ao seu rebanho; “Eisme aqui; envia-me”.

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